A aquarela O Sonho de Dickens, pintada em 1875 por Robert William Buss, serviu de base para uma interessante animação na mostra Dickens & London| Foto: Reprodução

Cinema

Histórias de orfandade em filmes importantes

Paulo Camargo

A orfandade é um tema central dentro da obra de Charles Dickens. Em uma Inglaterra em plena Revolução Industrial, onde os pobres não tinham vez, consumidos até o último sopro de vida por uma nova (e cruel) ordem econômica, muitas crianças perdiam seus pais muito cedo para a exaustão e doenças infectocontagiosas. O contexto parecia não apenas comover o escritor, mas motivá-lo a contar suas histórias, que lhe pareciam exemplares no mundo em desalinho onde vivia.

Cinematográfico antes mesmo que esse termo fosse cunhado, graças à exuberância de suas narrativas, altamente descritivas e visuais, com direito a planos e cortes, Dickens foi e continua sendo um autor muito adaptado para os meios audiovisuais: seus livros já renderam inúmeras adaptações tanto para a tela grande quanto para a televisão. E seus romances centrados em personagens órfãos – Grandes Esperanças, Oliver Twist e David Copperfield – tiveram transposições bastante interessantes.

Talvez um dos melhores longas-metragens baseados em Dickens é o soberbo Grandes Esperanças (1946), de David Lean, que acabara de realizar sua primeira obra-prima, o drama romântico Desencanto (1945). Fiel ao romance original, mas sem abrir mão de reiventá-lo enquanto imagem em movimento, a leitura de Lean para a história de Pip (Tony Wagger, na infância, e John Mills, quando adulto) é espetacular. A trama acompanha a história do menino sem pai nem mãe que, ao ajudar o condenado Abel Magwitch, acaba mudando o próprio destino: o homem retribui seu jovem salvador, sem que ele saiba, tirando-o da pobreza e dele fazendo um cavalheiro educado e preparado para os salões burgueses.

Vencedor dos Oscars de melhor fotografia e direção de arte (ambos para filmes em preto e branco), Grandes Esperanças consegue trazer para o cinema algo difícil de ser traduzido em imagens: a capacidade que Dickens tinha de construir obras ao mesmo tempo monumentais e intimistas, por conta do detalhado pano de fundo histórico e social no qual estão inseridos dramas humanos tocantes e complexos, vividos por personagens magistralmente escritos.

Talvez por conta disso, a atualização feita pelo cineasta mexicano Alfonso Cuarón (de E Sua Mãe Também) em 1989, com Ethan Hawke no papel de Pip, agora batizado de Finn, não tenha funcionado tão bem. O filme, ainda assim, é visualmente interessante e tem um ótimo elenco, que conta com Robert De Niro, como o prisioneiro benfeitor, e Gwyneth Paltrow, vivendo Estella, a paixão eterna da vida do protagonista.

Paradigmático

A repercussão do Grandes Esperanças de Lean foi tão grande que dois anos mais tarde, em 1948, o diretor adaptou outro romance de Dickens, talvez o mais popular de sua vasta obra: Oliver Twist, outra narrativa sobre um garoto órfão, talvez a mais célebre de toda a história da literatura mundial e hoje quase paradigmática. Até mesmo o filme Pixote – A Lei do Mais Fraco (1980), de Hector Babenco, tem ecos do livro. Na adaptação de Lean, John Howard Davies vive o papel-título, um garoto que, cansado dos maltratos sofridos em um orfanato de Londres, foge para cair nas garras de Fagin (Alec Guinness), um ardiloso explorador de crianças que as usa para que cometam pequenos crimes nas ruas da capital inglesa.

Levado inúmeras vezes ao cinema e à televisão, inclusive pelo cineasta franco-polonês Roman Polanski (2005), a história encontrou sua versão mais bem-sucedida comercialmente sob a forma do musical Oliver!, primeiro nos palcos e depois em película, em 1968, sob a direção de Carol Reed. O longa-metragem, exuberante visualmente e com excelente trilha de canções, levou seis Oscars, inclusive o de melhor filme e direção.

Menos sorte teve David Copperfield, ironicamente um dos melhores romances de Dickens, sobre outro garoto que perde os pais e se vê forçado a enfrentar um mundo hostil e padrasto. A adaptação mais reconhecida, de George Cukor, é de 1935 e chegou a ser indicada a melhor filme, embora hoje esteja esquecida.

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Adaptações

Confira algumas transposições importantes de obras de Charles Dickens para o cinema:

• David Copperfield (Reino Unido/EUA, 1935), de George Cukor.

• Grandes Esperanças (Reino Unido, 1946), de David Lean.

• Oliver Twist (Reino Unido, 1948), de David Lean.

• Conto de Natal (Reino Unido, 1951), de Brian Desmond Hurst.

• Os Fantasmas Contra-Atacam (Estados Unidos, 1988), de Richard Donner. (baseado em Um Conto de Natal)

• Tempos Difíceis (Reino Unido, 1988), de João Botelho.

• A Pequena Dorrit (Reino Unido, 1988), de Christine Edzard.

• Grandes Esperanças (Estdos Unidos, 1998), de Alfonso Cuarón.

• Os Fantasmas de Scrooge (Estados Unidos, 2009), de Robert Zemeckis. (baseado em Um Conto de Natal).

Micawber, o eterno otimista de David Copperfield, o romance mais autobiográfico do escritor
Cena da clássica adaptação cinematográfica de Grandes Esperanças: dirigido por David Lean e lançado em 1946, filme levou Oscars de fotografia e direção de arte

"Toda criatura humana constitui profundo segredo e mistério", escreveu Boz, o mais famoso romancista vitoriano. Boz, ou Charles John Huffan Dickens (1812-1870), que em fevereiro de 2012 tem seu bicentenário de nascimento celebrado. Na Inglaterra, as comemorações incluem mostra de filmes, palestras e leituras – de especial relevância, as apresentações do ator Simon Callow –, e uma exposição importante, Dickens & London, no Museu de Londres. Nada mais justo: Dickens celebrou a capital britânica em seus vícios e virtudes; Londres se eternizou em sua grandeza e miséria na obra de Dickens.

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A exposição recria, com quadros, fotografias, roupas e objetos de época, a Londres de Dickens. O ponto alto é uma experiência de animação, da diretora Laurie Hill, realizada a partir da aquarela de Robert William Buss, O Sonho de Dickens (1875), onde se vê o escritor no conforto de sua biblioteca, trajado como um dândi, exceto pelos chinelos, olhos baixos, imaginando seus personagens: a pequena Dorrit sobre os joelhos, muitos outros pairando em redor. A pintura ganha vida com os personagens se movimentando em torno do criador. Inacabada, como os sonhos, a aquarela é um excelente ponto de partida para se adentrar o universo do incansável andarilho Dickens, que caminhava mais de dez quilômetros por dia a um passo vigoroso; que era adepto do mesmerismo; que gostava de viajar de trem; que sofria de gota e era altamente temperamental; que amava o teatro e gostava de fazer truques mágicos; que, enfim, eternizou suas experiências, seus sonhos e obsessões em memorável ficção.

Dickens foi jornalista e romancista, mas o seu sonho primeiro era o de ser ator. Ele se definia como "um ator, desde bebê". Para ele, "a mentira do teatro" era a "fonte e salvação" para a vida. Toda a sua ficção tem um cunho teatral acentuado, tanto no modo caricatural de descrever as personagens, quanto na maneira de captar seu modo de expressão, e, talvez por isso se preste tão bem às leituras dramáticas.

Ao descrever, por exemplo, a senhora Gamp, vemos a própria se materializar à nossa frente, revirando os olhos, com seu pescoço curto e seu cheiro de álcool:

"A senhora Gamp era velha e gorda, com voz rouca e olhos úmidos, os quais conseguia facilmente revirar e mostrar a parte branca. Tinha pescoço muito curto, de modo que lhe custava muito virar para olhar seus interlocutores... O rosto da senhora Gamp – o nariz, especialmente – era vermelho e inchado, de modo que era difícil apreciar sua companhia sem se recordar do cheiro de bebida."

Dickens participou intensamente da vida teatral de seu tempo, tanto como espectador e também como autor, diretor e ator. Diversas vezes cruzou o país em companhias teatrais e, depois, realizando leituras públicas de seus textos. Mais tarde, conquistaria os Estados Unidos com essas leituras: sabia fazer vozes e sotaques para cada personagem. Indicações de como ler as falas enchem as páginas de Oliver Twist; Dickens reescreveu seus textos, cortando-os e selecionando as partes mais emocionais e/ou cômicas para leitura. A filha de Dickens, Kate, relata como diversas vezes aconteceu de socorrer o pai em casa, pensando que ele discutia calorosamente com alguém quando este apenas estava a compor seus personagens, em voz alta e fazendo caretas diante do espelho. Alguns acreditam que foram essas leituras, ou melhor, a paixão com que as realizava, em uma época em que sua saúde exigia cuidados, que acabou por levá-lo à morte.

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Figura central

Dickens foi, sem dúvida, a figura central da cena literária vitoriana. Tinha amigos famosos, no mundo do teatro e das letras; encontrou os protagonistas de seu tempo, da rainha Vitória e os primeiros-ministros, Gladstone e Disraeli, ao escritor Dostoiévski, seu grande admirador. Tolstói tinha um retrato de Dickens em seu escritório e dizia que seus personagens eram "amigos pessoais". Entre os íntimos, John Foster, seu primeiro biógrafo; os poetas Alfred Lord Tennyson e Robert Browning; os romancistas William Thackeray Elizabeth Gaskell, Wilkie Collins, George Eliot e Thomas Carlyle. Em 1857, Dickens hospedou Hans Christian Andersen por cinco longas semanas, o que esfriou a amizade entre os dois.

Estar cercado de gente influente e ser comemorado como uma celebridade não afastou Dickens do mundo dos mortais; ao contrário, tornou-o mais preocupado com os desprotegidos e os esquecidos do poder. Dickens propôs reformas para melhorar a vida dos órfãos, das crianças abandonadas e das mulheres, tendo inclusive criado uma casa para recuperar prostitutas. Foi cotado para concorrer a uma vaga no Parlamento por seu empenho nas causas sociais, mas o escritor compreendeu que era pela ficção que poderia mudar a sociedade. E em sua ficção, ele comemorou o homem comum, vivendo à margem da sociedade.

Em seus contos, peças e romances, Dickens tratou de justiça, de educação, de criminalidade, de religião e de politica. Legou aos contemporâneos e à posteridade um retrato cômico, caricatural, e por vezes, sentimental, mas nem por isso menos verdadeiro e contundente, de sua época. Personagens como Oliver Twist e David Copperfield são símbolos do que há mais frágil e precioso na sociedade: a criança, em sua inocência e desproteção, o órfão solitário vagando pelo mundo a mercê dos adultos e da cruel justiça da época.

Ao captar o ritmo e a fala das ruas, ao combinar jornalismo e ficção, Dickens reinventou o romance inglês, e, no plano pessoal, exorcizou sua própria infância. O pequeno Charles, como David Copperfield e Oliver Twist, viveu "tempos difíceis", expressão que viria a ser título de outro de seus romances. Quando o pai sofreu revezes financeiros, Dickens foi obrigado a deixar a escola em Kent, a qual adorava e onde era admirado pelos professores e se mudar para Londres; nada a que ele não pudesse sobreviver até que seu pai foi preso por dívidas, e a mãe e os irmãos menores foram encarcerados, junto com o pai, na Marshalsea (prisão que permitia que os devedores levassem as famílias), até poder saldar as dívidas.

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Deixado sozinho do lado de fora, o frágil Charles que sofria de espasmos e de febres inexplicáveis foi forçado a trabalhar em uma escura e insalubre fábrica de graxa. Essa época de pobreza e solidão marcaria sua ficção. A expressão "a luta pela vida", uma de suas favoritas, nasceu desse tempo de miséria, humilhação e abandono.

O recebimento de uma herança inesperada mudaria a situação de John Dickens, que pôde, enfim, recuperar a liberdade. Por cautela, a mãe, Elizabeth, desejava que o filho permanecesse na fábrica de graxa (ele nunca lhe perdoaria), porém o menino, que nutria "grandes esperanças" sobre si mesmo, teve coragem de revelar sua agonia ao pai que compreendeu que abnegação e sacrifício eram agora desnecessários: Charles deveria voltar à escola. Dickens exorcizou essas experiências em seu romance mais autobiográfico, David Copperfield (1849-50): o pai seria a inspiração para Micawber, o eterno otimista.

Obras

Um pouco mais tarde, o jovem Dickens vai trabalhar em um jornal, onde assinava Boz. E foi sob o mesmo pseudônimo que publicou, em fascículos mensais, As Aventuras do Sr. Pickwick (1836-37), seu primeiro romance, alcançando relativo sucesso. A seguir, já como Charles Dickens, publicou, também em fascículos, Oliver Twist (1837-39); Loja de Antiguidades (1840-41); Dombey e Filhos (1846-48); A Pequena Dorrit (1855-57); Nicholas Nickleby (1838-39); Casa Sombria (1852-53); Um Conto de Duas Cidades (1859); Grandes Esperanças (1860-61), entre outros. Uma de suas obras mais conhecidas é Um Conto de Natal (1843), escrita para comover a sociedade e arrecadar donativos para os necessitados.

Com imenso sucesso de público, de crítica e também financeiro, Dickens conseguiu realizar um sonho de infância e comprar a propriedade Gad’s Hill Place, que tantas vezes havia admirado quando viajava com o pai. Dickens lembra-se do pai lhe dizer quando menino: "se você for realmente perseverante e trabalhar muito duro, pode um dia vir a morar nesta casa". Dito e feito: Dickens comprou a casa em 1856 e foi nela que ela veio a falecer em 1870.

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Ainda relativamente jovem quando morreu, com 58 anos, mas muito desgastado por sua agitada vida mental e emocional, Dickens foi um homem perseguido por fantasmas nos últimos anos. Talvez não se perdoasse por ter repudiado a esposa, Catherine Hogarth, depois de dez filhos e mais de 20 anos de casamento. Por outro lado, talvez não tivesse suportado continuar a viver com a depressiva Catherine, ele, que era tão cheio de vida e energia. Talvez não se perdoasse por amar a juventude e inteligência de Ellen Ternan, uma atriz 28 anos mais jovem, o grande segredo de sua vida. Talvez tenha tido com Ellen um filho, que morreu na primeira infância – isso pode ter parecido, para Dickens, punição divina, assim como o sério acidente de trem que teve enquanto viajava com a atriz e que deixou pistas de seu envolvimento com a moça. O fato é que o escritor que defendia as mulheres repudiou publicamente a própria esposa.

Talvez Dickens jamais tenha compreendido Dickens. Para fugir de si mesmo, refugiou-se em seus personagens, realizando leituras públicas por todo o país, a despeito das advertências médicas. Era uma importante fonte de renda para quem sustentava muitas famílias – as viúvas e filhos dos irmãos, a mãe, a esposa, os filhso ainda pequenos, os filhso crescidos em seus revezes financeiros, a amante e a família da amante.

Trabalho até a morte

Dickens dedicou seus quatro últimos anos às leituras públicas – Escócia, Irlanda, norte da Inglaterra, Gales, América. Mesmo com fortes dores no olho esquerdo, no estômago e no peito, sofrendo de pressão alta e de problemas cardíacos, Dickens insistia em subir ao palco. As leituras lhe recompensam com um sentimento de pertencimento, como ele tantas vezes confessou. Talvez os aplausos fossem a aprovação que precisava. Muitos acreditam que ele, literalmente, se matou de trabalhar. Seu último tour, em 1869, teve que ser subitamente interrompido por causa da saúde frágil. Ele insistiu em uma apresentação derradeira, em 15 de março de 1870, onde se despediu de uma plateia de 2 mil espectadores emocionados. Amparado por duas bengalas, com os olhos marejados, Dickens se dirigiu ao seu público, seu caso de amor mais duradouro e a quem Dickens nunca foi infiel:

"Fecho hoje essa fase de minha vida com sentimento de profundo pesar. Por quinze anos neste palco, e em outros similares, tive a honra de apresentar minhas ideias para a vossa apreciação, e ao observar a vossa recepção, usufrui de intenso prazer artístico, algo dado a poucos a conhecer... Senhoras e senhores, desapareço agora para sempre dessas luzes com um respeitoso, afetuoso e agradecido adeus."

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Ele viria a morrer poucos meses depois. Seus anos finais permanecem, ainda hoje, um mistério; fatos não são suficientes para explicar o que ia em seu coração. Dickens foi autor e ator, escritor e dramaturgo, criador e criatura, defensor das mulheres e algoz da própria esposa. Dickens nos escapa, como possivelmente, eludia a si mesmo. Como escreveu Boz, "toda criatura humana constitui profundo segredo e mistério".

Serviço:

Para ver a animação do Museu de Londres, acesse o endereço http://www.annexfilms.co.uk/blog/181

Liana Leão é professora de Letras Estrangeiras Modernas da UFPR.