Está na praça o livro póstumo do gaúcho Eddy Franciosi (1930-1990), Uma Crônica Curitiba e Sua História. Jornalista e homem de teatro, em 50 anos de vivência em Curitiba dissecou a cidade até o osso. Absorveu usos e costumes, observou, conversou, leu, pesquisou, anotou e comparou. As 600 páginas datilografadas andaram em busca de editor logo após sua morte, em 1990. Cheguei a vê-las nas mãos do jornalista Szyja Ber Lorber, que as obteve de Gunilda Dickman.
Sem dúvida, um livro difícil de editar, dada a quantidade e diversidade de temas e subtemas com Curitiba como ponto de partida ou de chegada. Não se trata de fazer história, deixou claro e por escrito o próprio autor. Mas a história apoia cada crônica, algumas são verdadeiros ensaios, com citações que vão desde a Bíblia até as publicações nacionais disponíveis na época da escrita, passando por edições estrangeiras lidas no original.
Quando a crônica se mistura com a história, a cronologia pura e simples é quase impossível. Daí a Curitiba salteada, com temas que se entrecruzam mais de uma vez em diferentes episódios. Também histórias que de alguma forma se repetiram, como o gesto de receber o Papa João Paulo II com pão e sal em 1980, exatos cem anos depois que o colono polonês Francisco Wos recebera, da mesma maneira, o Imperador Pedro II e a Imperatriz Thereza Christina em sua casa.
Poloneses e alemães foram, para o autor, a dupla etnia que mais difundiu hábitos na terra de adoção. Razão pela qual entre eles e o paranaense há mesmo uma certa semelhança de caráter, de postura física e moral. É algo aparentemente imperceptível, que mais se sente do que se vê.
A ocupação do território pelo homem branco teve início com a busca do ouro e a caça aos índios para que trabalhassem as terras dos colonos de São Vicente, Santos e São Paulo que, já em 1585, afirmava não poder se sustentar sem escravaria.
A conquista da independência do Paraná de São Paulo (primeiro Capitania, depois Província) não partiu de Curitiba, mas de Paranaguá, sem dúvida a Vila mais importante em 1811. A Pedro Joaquim de Castro Correia ficamos devendo a origem, a expressão e o estímulo das primeiras manifestações do movimento que havia de triunfar em 1853. Nesses mais de 40 anos até a emancipação houve beneméritos como Manoel Francisco Correia Junior, que empenhou seu tempo e sua fortuna à causa, e oportunistas como João da Silva Machado, que usou o movimento para se apossar de terras e se eleger senador.
Anotados os princípios do território e da sua ocupação humana, Eddy Franciosi parte para a crônica histórica, trazendo Curitiba até o final da década de 1980. Pelo primeiro censo industrial, do final do século 19, na cidade de uns 40 mil habitantes abundavam alfaiatarias, cervejarias e sapatarias. Ou seja: os curitibanos de então vestiam-se e calçavam-se com muito esmero para beber muita cerveja!
As ruas pioneiras com seus nomes óbvios da Entrada, do Jogo da Bola, da Carioca do Campo, da Marinha etc. desfilam como cenário da vida cotidiana. A monotonia foi muitas vezes quebrada por episódios como a Guerra do Pente, na Praça Tiradentes, ou, nas sombras, pela presença das primeiras casas de tolerância, na Rua das Flores e na Ratcliff, com sucedâneos e personagens na Riachuelo e na periferia.
Da mesma forma que o autor se debruça sobre a história, ponteia o livro com observações agudas acerca do caráter do curitibano, habitante de uma baixada mais ou menos plana entre as Serras do Mar e de São Luiz do Purunã, para onde convergem ou nascem nada menos de 17 rios. Rios que formam nevoeiros matinais que se estendem ao longo do dia e envolvem a cidade em bruma.
Uma certa bruma que marca o caráter do curitibano, um tímido para Temístocles Linhares. Até a sociabilidade aflorar a ponto de dizer "como vai" ao vizinho, pode demorar anos. Mas a revelação de um encanto de vizinho, capaz até de convidar para um drinque sem indagar a filiação do convidado (sim, porque ele dá muita importância à genealogia)... é só questão de tempo.
As 580 páginas sem ilustrações da obra de Franciosi não são para se ler de um fôlego. O livro é de referência, capaz de apoiar pesquisadores, curiosos, novos cronistas até. Salta aos olhos: o autor, gaúcho, mapeou Curitiba de cor, pelo coração e pela memória.
Serviço
Uma Crônica Curitiba e Sua História, de Eddy Franciosi. Editora Esplendor, 580 págs., R$ 55. Disponível nas Livrarias Curitiba.
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