Na entrevista a seguir, o historiador Marcos Dias Araújo, professor das universidades Tuiuti e Positivo, fala sobre nossa percepção dos eventos históricos e critica o que chama de "hipertrofia" desses mesmos eventos atualmente, segundo ele, alguns acontecimentos e crises acabam recebendo atenção exagerada da mídia e, muitas vezes, uma interpretação histórica apressada e errônea, como se toda semana se iniciasse uma "nova era". "É preciso lembrar sempre que uma era é definida no seu final, e não no começo", observa o professor.
Gazeta do Povo Vivemos um tempo em que o testemunho e o relato pessoal ocupam, mais do que nunca, o lugar antes reservado apenas à História, com inicial maiúscula?
Marcos Dias Araújo Não pode haver comparação entre os relatos e a História. Os relatos, todos, são fontes para a História. Nesse sentido, comparar um fragmento com a montagem completa do quebra-cabeça é impróprio. O que acontece, em vez disso, é que nossa era, marcada pelo individualismo e pela subjetividade, é ávida pelo reconhecimento desse tipo de relato em detrimento de uma outra fonte, por exemplo, uma tabela econômica, igualmente rica e que nas décadas de 1960 e 70 foi muito valorizada. A História Oficial e a acadêmica não tinham ligação com as memórias das pessoas que viveram determinados períodos. Esse debate, na América Latina e no mundo, já vem sendo feito há tempos e o papel do relato pessoal cresceu sucessivamente no século 20, bem como o gosto pelas biografias. A memória não deve ocupar o lugar da história não só por ser parcial, mas por ser enganosa às vezes. Assim, dizer agora que o Médici na verdade queria revogar o AI-5, quando sabemos que utilizou como ninguém as prerrogativas do ato para massacrar a oposição, é tentar reinventar a memória. Podemos cair em erros absurdos se deixarmos a memória de atores isolados, sem a análise meticulosa do historiador, dar a linha de interpretação. Nem toda memória é verídica ou bem informada, nem todo relato é aproveitável.
No livro Tempo Passado, a crítica argentina Beatriz Sarlo, pensando as ditaduras latino-americanas, afirma: "(...) a história oral e o testemunho restituíram a confiança (na) primeira pessoa que narra sua vida (privada, pública, afetiva, política) para conservar a lembrança ou para reparar uma identidade machucada". Esse tipo de "reparação" é essencial ao entendimento de um processo histórico como, por exemplo, o dos chamados Anos de Chumbo, no Brasil?
É muito importante, como é o relato de todo personagem, menor ou maior, envolvido em situações históricas traumáticas. Relatos de sobreviventes do Holocausto, de torturados das ditaduras, de assassinos de genocídios são fundamentais para a construção do objeto histórico. A função reparadora do discurso, numa analogia freudiana, tem o sentido de libertar o indivíduo. Isso é particularmente forte na Argentina, com sua ditadura de dezenas de milhares de mortos. No Brasil, esse papel é menor pelo número também menor de afetados diretos pela violência do regime.
Mas a Lei de Anistia, da forma como foi aplicada aqui, e a resistência em abrir os arquivos da ditadura não nos impedem de conhecer a história completa daquele período?
Quanto à resistência na abertura dos arquivos, sim. É um grande absurdo. Não existe motivo para os militares de hoje defenderem os ditadores e os assassinos que naquela época o exército encobriu em suas entranhas. Foi uma mostra de covardia do governo Lula não bancar a abertura de todos os arquivos. As Forças Armadas são a instituição mais resistente à admissão de culpa. É como se jamais errassem no seu julgamento, mesmo quando agiram de maneira criminosa, como no caso da Revolta da Chibata, em Canudos e na ditadura. Quanto à lei da Anistia ter protegido os torturadores e assassinos, os possíveis processos poderiam elucidar a localização de corpos e casos particulares que trariam grande alívio aos familiares das vítimas, mas não mudariam significativamente a visão que temos do período.
No caso do colapso do comunismo, a abertura dos arquivos secretos dos países na esfera de influência da União Soviética, e dos seus próprios, parece ter gerado uma infinidade de relatos sobre a personalidade e o caráter de líderes como Stálin e outros. Isso ajuda a entender o que se passou por trás da Cortina de Ferro?
A publicação de diversas biografias dos líderes soviéticos Lênin e Stálin está dentro da onda de biografias detratoras, usando mais a tática da contagem de corpos do que a explicação inédita das vicissitudes políticas. Outras biografias usam documentos inéditos para redimensionar a figura biografada, mostrando aspectos curiosos, perversos ou inusitados: os casos extraconjugais, as poesias amorosas, os vícios. Nesse sentido, muitas biografias estão no campo do escândalo jornalístico da pior qualidade. Mas não devemos nos enganar: a abertura desses arquivos permitiu conhecer muito mais sobre os diversos aspectos da vida social, cultural e policial dos regimes comunistas.
E quanto aos eventos mais recentes do 11 de Setembro: o fato de conhecermos todos os detalhes daquele dia quase minuto a minuto, graças às tecnologias disponíveis e de nos sentirmos todos "testemunhas oculares" do que ocorreu pode desviar a atenção do quadro histórico mais amplo?
Com certeza o caráter espetacular e o uso ideológico do 11 de Setembro em nome da guerra contra o terrorismo nos iludem. A guerra do terrorismo internacional contra os Estados Unidos data de dez anos antes. O mesmo World Trade Center não foi atingido pela primeira vez em 1993? E poucos lembram do atentado gigantesco contra as tropas americanas em Beirute, em 1983. O ato de 11 de setembro de 2001 teve caráter espetacular, de mídia. É claro que a posição americana mudou, as liberdades foram cerceadas em muitos lugares e as coisas ficaram mais complexas no mundo da segurança e da defesa. Mas dificilmente eu localizaria o 11 de Setembro como um evento tão decisivo como foi a Revolução Francesa ou a Segunda Guerra Mundial. É a hipertrofia do evento. Sua dimensão é aumentada. A chegada de Colombo ou a descoberta de Gutenberg são eventos que foram superdimensionados em sua importância posteriormente. Hoje fazemos isso com os eventos do presente.
Atualmente vivemos uma crise econômica tratada, já, como evento histórico prova disso é a constante comparação com outra, a de 1929, esta devidamente incorporada aos livros de História. Há um distanciamento ideal cronológico, especialmente para se interpretar um fato como histórico?
Não existe essa coisa de distanciamento. O historiador desenvolve um olhar pouco ingênuo sobre o passado e, portanto, sobre o presente. Muitos se iludem com figuras, discursos, instituições. Para os jornalistas, toda mudança de governo ou de política é uma "nova era". Isso é bobagem. É preciso lembrar sempre que uma era é definida no seu final, e não no começo. Os jornalistas gostam de ver o nascimento de uma nova fase a cada semana para vender revistas aos incautos. Na verdade, a vida continua mais ou menos a mesma e pouca coisa muda de fato.
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