O escritor português José Saramago declarou, quando leu o romance o remorso de baltazar serapião, do angolano radicado em Portugal Valter Hugo Mãe, que o texto do jovem escritor era uma revolução na língua portuguesa e o apelidou de "tsunami literário". A admiração do prêmio Nobel falecido em 2010 não é para menos: a preciosidade com que Mãe (que, até então, só assinava em letras minúsculas) trata seu texto chega a ser comovente de tão rara. Os leitores brasileiros que começaram a conhecer sua obra no ano passado boa parte por conta de sua vinda para a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) puderam endossar o coro de Saramago ao ler a máquina de fazer espanhóis, publicado pela Cosac Naify. Pela mesma editora, chega agora O Filho de Mil Homens, em que Mãe abandona a obsessão por letras minúsculas, mas não deixa de prezar pelo lirismo e pela prosa bem sedimentada que construiu rapidamente sua reputação.
O Filho de Mil Homens pode ser considerada a história do combate à solidão. O filho mencionado é Camilo, um jovem fruto de uma relação digna do repúdio da sociedade. Sua mãe, uma anã que só despertava pena por parte das mulheres, recebeu em sua cama mais homens do que todos poderiam supor inclusive os maridos da pequena vila em que morava. O nascimento do filho Camilo e a morte da mãe em decorrência do parto dá início à saga de uma família postiça que se monta a partir de relações de compaixão, afeto e consideração. Camilo, o menino sem pai e, desde o nascimento, órfão também de mãe, é criado provisoriamente por um velho senhor, até que encontra o pescador Crisóstomo. Sozinho aos 40 anos e com uma imensa vontade de ser pai, Crisóstomo traz o menino para sua vida. Dotado de uma bondade rara no romance, o pescador constrói a educação sentimental do filho a seu molde, ensinando-o a amar e a não discriminar, enquanto todo o resto do mundo parece carregar o machismo e o preconceito em relação à liberação sexual da mulher que encontra nos amores fortuitos o preenchimento da lacuna destinada ao amor verdadeiro.
Temas
É, pois, na intolerância às mulheres e aos homossexuais que se articula o núcleo de O Filho de Mil Homens. De outra extremidade, vem a história de Isaura, uma jovem que cai em desgraça por perder a virgindade antes do casamento. Desenvolvendo anorexia e depressão, é salva de uma vida eternamente solitária quando encontra Antonino, um homem gay que procura um casamento de fachada para se salvar do mesmo destino de difamação e preconceito. Rejeitados por suas próprias famílias, unem-se em um matrimônio triste. Mas as vidas de Isaura e Antonino se cruzam inesperadamente com as de Crisóstomo e Camilo, e uma esperança é vislumbrada para essa história, desde o começo, já desesperançosa.
Talvez o mais chocante no enredo criado por Valter Hugo Mãe seja a indefinição do tempo em que se passa a história. Sem especificar uma época, o autor deixa a cargo do leitor considerar os critérios necessários para estabelecer um contexto histórico. A única dica no livro se revela quando Crisóstomo fala que, assim como os homossexuais os surfistas também sofrem preconceito provavelmente referindo-se ao momento em que o esporte foi difundido em todo o mundo, nas décadas de 60 e 70. É assombroso, portanto, o quanto se pode julgar medieval uma sociedade apenas pelo seu pensamento retrógrado.
Extremo em seu estilo, sem, contudo, sobrecarregá-lo com pequenas filosofias e barroquismo exacerbado, Valter Hugo Mãe mantém um padrão de qualidade textual ao longo de todo o livro. Pincelando-o sobriamente com lirismo e uma narrativa floreada e autêntica, o autor compõe um romance atemporal e significativo para a nova literatura lusófona.
GGGG
O Filho de Mil Homens - Valter Hugo Mãe Cosac Naify, 256 páginas, R$ 39. Romance.
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