Captar a história americana por meio de convenções dos partidos democrata e republicano entre 60 e 72 é o núcleo de O Super-Homem Vai ao Supermercado (Tradução de José Geraldo Couto e Sergio Flaksman. Companhia das Letras, 456 págs., R$ 48,50). Norman Mailer escreve que "Shakespeare seria pequeno diante da América", o que significa dizer que sua tentativa de apreender os EUA é fadada ao fracasso ou, pior, que ele é mais equipado que o bardo inglês para a tarefa.
Enfim, "pretensão" é o nome do meio de Norman Mailer, sem dúvida um dos grandes es-critores americanos do século passado (hoje com 83 anos). A coleção Jornalismo Literário pe-gou o livro Some Honorable Men (Alguns Homens Honrados), coletânea de quatro textos originalmente publicados na imprensa americana, tirou o trabalho so-bre a convenção democrata de 72 "por critério de importância" e "para manter o equilíbrio entre democratas e republicanos", explica-se em nota de rodapé e montou a edição brasileira.
As prévias de cada partido definem os candidatos que concorrem à presidência dos EUA e costumam acontecer até um ano e meio antes das eleições. O melhor relato é inspirado na convenção democrata de 60, da qual saiu John Fitzgerald Kennedy (1917 1963).
O posfácio do jornalista Sérgio Dávila faz a genealogia do título do livro, contando o episódio em que o editor da revista Esquire fez uma alteração insignificante, mas suficiente para levantar a ira de Mailer. Para o escritor, o marido de Jacqueline Lee Bouvier (1929 1994) era um homem com qualidades que lhe davam vantagem sobre seus contemporâneos. Ele era um super-homem. Porém, não alardeava suas diferenças e procurava mostrar que era um sujeito comum, do tipo que vai ao supermercado.
Mailer trai alguma simpatia por JFK, comparando-o a heróis nacionais (o jogador de beisebol Mickey Mantle o aviador Charles Lindbergh). Kennedy, escreve o autor, "apesar de todo o seu currículo liberal, (...) tem uma aura daquela outra vida, da segunda vida americana, daquela longa noite elétrica em que o fulgor do néon indicava o caminho para o burburinho do jazz".
Célebre por ter descrito em A Luta o embate entre George Foreman e Muhammad Ali ocorrido em 1974 no Zaire (hoje República Democrática do Congo), Mailer é afeito a referências populares e metáforas esportivas boxe e cinema são suas fontes favoritas. Em uma descrição inspirada de JFK, ele o aproxima do ator de O Poderoso Chefão. "A exemplo de (Marlon) Brando, a qualidade mais característica de Kennedy é o ar remoto e privado de um homem que atravessou algum terreno solitário da experiência, de perda e ganho, de proximidade com a morte, que o deixa isolado da massa dos outros."
Uma preocupação constante em O Super-Homem Vai ao Supermercado é a psique americana, a alma da população, seu inconsciente. Nas tentativas de definir a América, Mailer dá descrições implacáveis de uma nação "oscilante, infeliz, pomposa e muito corrupta" e chega ao extremo de definir as eleições de 60 como uma disputa entre o glamour (JFK) e a feiúra (Richard Nixon).
Das 400 e tantas páginas do livro, as 11 do prefácio sejam talvez as mais saborosas. Escrito pelo próprio Mailer para Alguns Homens Honrados, ele traz opiniões (e algumas verdades) contundentes sobre jornalismo, literatura e jornalismo literário. O autor se ressente de a fama que conseguiu como "novo jornalista" ter sobreposto a do romancista. Para ele, o jornalismo "é um modo promíscuo de ganhar a vida", o repórter "não tem respeito algum pela nuance" e o mundo "não é algo a ser reconstituído por blocos de palavras pré-fabricadas".
Mailer defende a necessidade do tempo ocioso do romancista e do poeta para descobrir o que pensa. E retoma a idéia da psique, afirmando que a pressão do prazo curto enterra o inconsciente e deixa o jornalista com seus clichês. "A verdadeira premissa do jornalismo é a de que o melhor instrumento para avaliar a história é um gravador sem rosto e sem intelecto", escreve. Não se trata de uma verdade absoluta, mas é reveladora de uma noção de jornalismo que, de certa forma, ainda persiste.
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