Depois de uma década trilhando o caminho de uma música mais dançante, Lulu Santos retomou a veia roqueira no recém-lançado CD Letra e Música. O cantor e compositor não abandona completamente a eletrônica marca de seus discos a partir de Assim Caminha a Humanidade (1994), mas dá mais enfâse às composições e às guitarras no novo trabalho, que já tem tocado nas rádios "Pop Star", do grupo oitentista João Penca e seus Miquinhos Amestrados.
Mas apesar da regravação, o maior hitmaker (compositor de sucessos) do pop/rock nacional conta, em entrevista ao Caderno G, que a volta às origens não teve nada a ver com o revival da Geração 80 e se deve muito aos Rolling Stones, a Bob Dylan e ao bluesmen americano Robert Johnson cujos trabalhos Lulu diz ter percebido com maior profundidade apenas agora.
O músico carioca também faz comentários sobre o mercado fonográfico brasileiro, mp3, a situação política do país e a atuação de Gilberto Gil no Ministério da Cultura.
Caderno G Letra e Música é mesmo uma retomada do rock? Você está abandonando a eletrônica?Lulu Santos Esse disco mistura as duas coisas, o pop/rock e a eletrônica, numa medida mais conveniente, num certo sentido mais acertada, pois pela experiência que a gente vai adquirindo na vida, vai fazendo a receita até que um dia o bolo dá certo. O que mais me injuriou no resultado do Programa (disco de 2002, que também era focado no pop/rock), que não produzi, foi uma certa anemia sonora do disco, que soava pequeno. O Letra e Música é o oposto disso, tem um tipo de virilidade sonora. Embora todo disco meu seja pelo menos metade produzido de fato por mim, neste eu tomei o discurso e a feitura do processo na minha mão. E em três semanas eu finalizei o trabalho.
O que acha do revival dos anos 80?Provavelmente, é legítimo, como todo revival. Mas, para mim, é difícil falar em revival, pois sempre tive uma carreira constante, e a verdade é que não lembro direito dos anos 80. Para mim, a versão do "Pop Star" não lembra os anos 80. Poderia ter gravado uma do Jorge Ben do mesmo período e ninguém ia pensar nisso. Mas essa época se caracterizou pelo surgimento de um pop/rock popular no Brasil. Na realidade, eu sou da geração 70, comecei em 1974 e o disco do Vínima (grupo formado ao lado de Ritchie e Lobão) saiu em 1976. Ultimamente, eu tenho um reencontro com essa linguagem do rock por intermédio dos Rolling Stones, proporcionado não tanto pela persistência deles, mas pela veracidade dessa persistência. Letra e Música é do jeito que é parcialmente por causa de um DVD que vi dos Stones, da caixa Four Flicks. São quatro filmes e um deles é excepcional, do show em Richmond, na Inglaterra, o subúrbio de onde eles saíram. Você vê a conexão deles com aquela música, a fidelidade ao berço do rhythm and blues. Isso me fez também trabalhar um manifesto de fidelidade a essa música. Em última instância, se faço música não é por causa do samba de roda da Bahia, ou de qualquer coisa não sei de onde, é por causa do rock-and-roll mesmo, de brancos ingleses reprocessando a música de negros americanos.
Você também faz menção ao livro de Bob Dylan (Crônicas Volume 1) em uma das músicas do CD ("Sinhá & Eu")...O livro do Dylan é muito importante. Na primeira rodada (início da carreira), assim como os Stones, também não entendi o Dylan direito, só agora. Tem uma hora em que ele credita a formatação da composição dele, diferente daquela coisa do folk singer, à primeira coletânea do Robert Johnson. Quando ele cita aquilo, você senta num computador, vai numa loja virtual, compra o CD e em três semanas ele chega para você, que ainda está lendo o livro e começa a processar o multitexto que aquilo te traz. Eu conhecia aquelas músicas do Robert Johnson, de gravação dos Rolling Stones, mas nunca tinha percebido a profundidade humana disso, um moleque de 20 anos não percebe.
E como fica a eletrônica para você?A eletrônica permanece como está agora, completamente presente, como em "Zerovinteum", que eu gravei em Letra e Música. Só relaxei mesmo quando ouvi o pancadão: "Ah, agora é meu disco". Se isso estiver ausente, estou deixando de lado uma coisa que é um interesse legítimo que adquiri.
O mercado da música está passando por uma transformação. Acha que o mp3 vem mesmo para substituir o CD?Se as pessoas preferirem ouvir música em mp3, é um problema delas. Eu mesmo jamais vou aderir a um formato que soa pior do que é proposto em um disco. A compressão de mp3 (arquivo que compacta as informações sonoras) faz a música soar mal. Eu não tenho o trabalho de ficar um mês e meio no estúdio, elaborando a sonoridade mais perto da perfeição que eu possa conseguir, para depois a pessoa chegar e comprimir isso em mp3. Se quiser fazer isso, o gosto é dela, mas para meu uso jamais compraria um CD de mp3. Eu sou um farto comprador de música em CD e DVD.
O que acha do mercado brasileiro estar investindo quase que apenas em registros ao vivo, com lançamentos casados de CD/DVD?A gente está nesse boom do DVD, que foi o eletrodoméstico mais vendido no Natal do ano passado. As pessoas estão a fim de desfrutar isso, que é uma grande aquisição mesmo. Essa qualidade de som e imagem é uma avanço no entretenimento caseiro. No nível da violência urbana atual, é natural que a pessoa fique dentro de casa e faça dela um lugar agradável. Eu mesmo faço isso. Nada mais natural que o mercado corra atrás do que está dando retorno. Não vejo problema nenhum nisso.
Muitos artistas estão partindo para criação de um selo independente próprio. Pretende ir por esse caminho também?Não tenho instinto de empresário, não sou negociante, tenho todas as regalias que um artista pode ter, não sofro qualquer tipo de ingerência, nunca souberam o que eu ia gravar. Fora isso, sou nascido e criado nessa indústria. Não vou agora cuspir no prato que comi. Eu sei como ela funciona, sei que ela não é perfeita, que está num momento ruim. Mas, num certo sentido, estou fazendo minha parte, dando minha contribuição. Nunca me senti vítima da indústria fonográfica. Mesmo. Muito pelo contrário. Quem tiver a pachorra de ser independente deve ir fundo. A Marisa Monte é totalmente independente, conseguiu comprar todas as gravações de suas músicas. Brilhante da parte dela. Eu não tive esse nível de organização. Quem sabe daqui por diante comece a ter.
Algum comentário sobre a conturbada situação política do país?Estou começando a achar essa novela chata, porque o autor começou a se perder. Mas, por outro lado, quero ver essa novela até o fim.
E a atuação do Gilberto Gil no Ministério da Cultura?Não tenho opinião sobre isso. Há uma distância entre o poder e a realidade. Na construção da minha arte, a ingerência é quase nula, seja quem for o ministro. Para um homem maduro, na idade do Gil, o desafio de tomar um cargo público e tentar de alguma forma fazer a diferença é muito grande. Depois, a encrenca vai ficando cada vez maior. Só o fato dele ter permanecido até agora já conta. Eu conheço o Gil, tenho estado com ele, está adorando essa coisa de ser embaixador internacional da cultura brasileira na pele de um ministro de estado.
O que acha do presidente Lula?Você votou no Lula? Tinha de votar, não fiz campanha, não abri o voto, não acho que ele me represente. Sinto-me mais representado pelo ideário de um Aécio Neves, esses políticos vindo de uma elite de fato política. Elite no Brasil é sinônimo de opressão. Penso o contrário. Pobre de um país que não produz uma elite de tudo, do pensamento, da política, da afirmação cultural. Mas fiz a aposta histórica disso que acabou sendo, em última instância, uma fanfarronice. Mas tem que se notar que a saúde institucional atual dá uma demonstração do quanto a gente evoluiu nesse exercício que se chama democracia.
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