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O trecho ficcional de Alfred e Emily sugere que Doris Lessing teve dificuldades para imaginar uma realidade da qual ela mesma não fizesse parte | Ulrich Perrey/EFE
O trecho ficcional de Alfred e Emily sugere que Doris Lessing teve dificuldades para imaginar uma realidade da qual ela mesma não fizesse parte| Foto: Ulrich Perrey/EFE

Perfil

Saiba um pouco mais sobre a vida e a obra de Doris Lessing

Parentes

Filha de pais britânicos, nasceu em 1919, em Kermanshah, na Pérsia (atual Irã).

Grama

Em 1925, mudou-se com a família para uma fazenda na Rodésia do Sul (hoje Zimbábue). Lá viveu até 1949, quando foi para Londres, levando o manuscrito de seu primeiro romance, The Grass Is Singing ("A grama está cantando"), que obteve expressivo sucesso internacional quando lançado.

Prêmios

Autora de uma obra extensa, que inclui ensaios, contos, romances e textos memorialísticos, Doris Lessing ganhou diversos prêmios, entre eles o Somerset Maugham (1954), o W. H. Smith Award (1986), o Mondello (1987), o Prêmio Internacional da Catalunha (1999), o Príncipe de Astúrias (2001) e o Prêmio Nobel de Literatura (2007).

Títulos

Dela, a Companhia das Letras publicou Alfred e Emily; Amor, de Novo; Andando na Sombra; As Avós; Debaixo da Minha Pele e O Sonho Mais Doce.

Fonte: Companhia das Letras.

Doris Lessing declarou certa vez que "a ficção trabalha melhor a verdade" do que a simples reminiscência, mas, enquanto isso até pode ser verdade em relação à sua célebre série semiautobiográfica de romances protagonizada pela personagem Martha Quest, é uma observação que não se aplica ao seu livro mais recente, Alfred e Emily, uma obra intrigante, metade ficção, metade memórias.

A vaga e frágil primeira parte do romance tenta imaginar o que teria sido a vida de seus pais se a Primeira Guerra Mundial nunca tivesse ocorrido. A segunda metade, poderosa e angustiante, conta a história real da vida desses pais, e os caminhos imprevisíveis pelos quais a guerra destruiu seus sonhos e psiques, terminando por isolá-los nos confins da África, numa exis­­tência miserável habitando uma pequena fazenda na Rodésia.

Esse retrato dos próprios pais havia sido esboçado na autobiografia de Lessing, Debaixo da Minha Pele, publicada em 1994 (a edição brasileira saiu pela Companhia das Letras em 1997). Se, naquele livro, a autora adotava um tom distanciado e objetivo, agora escreve com um imediatismo visceral, evocando a miséria terrível e continuada de seus pais na Rodésia, a frustração dolorosa que envolvia sua existência diária.

Seu pai, Alfred, perdera uma perna na guerra e continuava assombrado pelo horror das trincheiras, onde muitos de seus companheiros tinham morrido. Sua mãe, Emily, uma enfermeira de guerra, era perseguida pelo espectro dos gritos por morfina de seus pacientes feridos e pela perda do grande amor de sua vida, um médico que se afogara no Canal da Mancha.

Durante uma espécie de feira mundial chamada Exposição do Império, Alfred e Emily ficaram muito entusiasmados pelo estande da Rodésia do Sul, que prometia aos visitantes: "Faça fortuna plantando milho"; e foi assim que acabaram na África, depois de gastar a poupança de mil libras de Alfred em equipamentos agrícolas para serem usados num pequeno pedaço de terra. Alfred sonhava ganhar dinheiro suficiente ali para que pudesse voltar à Inglaterra e realizar seu antigo sonho de comprar uma fazenda em Essex, Suffolk ou Norfolk, mas isso não viria a acontecer.

Sobrevivência

A fazenda da Rodésia era "demasiado pequena para se conseguir algo que se pudesse chamar de grandes lucros", escreve Lessing, e, enquanto seu pai tentava a duras penas sobreviver ignorando o fato de que tinha uma perna de pau, foi ficando cada vez mais incapacitado, especialmente de­­pois que desenvolveu diabetes.

"Logo a família deixaria a fa­­zenda", lembra a autora. "Seria impossível manter meu pai vivo naquele lugar: para começar, porque eram mais frequentes agora os comas e as crises e as visitas urgentes à cidade – se é que se pode usar a palavra ‘ur­gen­­te’ para uma viagem mortal de cinco horas de buraco em buraco por estradas péssimas."

A família não conseguiu voltar para a Inglaterra e acabou "num pequeno bangalô horrível" nos subúrbios da capital rodésia.

Turbilhão

Emily chegara à África com malas repletas de roupas e acessórios da Liberty’s e da Harrods. Sonhava com um turbilhão de eventos sociais na colônia, e por isso levara todo tipo de vestidos de festa, e mais boás de penas, sapatos de brocado e mantos de seda – os quais jamais chegaria a usar no meio do mato. Os vestidos seriam comidos pelas traças, ano após ano socados num baú escondido atrás de uma cortina no quarto – e para a jovem Doris passariam a representar "todo o glamour da Terra do Nunca", pois nada poderia estar mais distante da vida em Banket, Rodésia do Sul.

Compreensão

Escrevendo com o brilho e a clareza de seus 88 anos, Lessing – premiada com o Nobel de Literatura em 2007 – revela o respeito que hoje tem pela vida dura que levaram seus pais e a raiva que tantas vezes sentiu quando era uma menina revoltada contra a mãe. Escreve também sobre as lembranças que o pai e a mãe guardavam da guerra, e sobre como essas memórias afetaram sua própria compreensão do mundo.

Na primeira metade do livro, Lessing tenta dar a seus pais a vida que poderiam ter tido num mundo sem aquela guerra terrível. Alfred se torna o agricultor inglês que sonhava ser, casa-se com uma mulher chamada Betsy – em vez de Emily – e vira o pai não de Doris, mas de meninos gêmeos.

Emily, por sua vez, casa-se com o médico que pensou amar, mas acaba tendo um casamento frio e insatisfatório; não chega a ter filhos. Depois que seu mal-amado marido morre, ela usa a grande fortuna que ele lhe deixou para criar uma organização de caridade que leva escolas a bairros e condados pobres. Embora não encontre felicidade pessoal, essa versão de Emily passa a ser uma figura querida na sociedade, conhecida por suas boas obras.

Essa parte ficcional do livro carece de todos aqueles belos detalhes da parte memorialística, brilhante nas mais precisas minúcias sobre a vida rural africana, a casa dos pais de Lessing no meio do mato e as próprias dificuldades da autora ao caminhar pelo terreno pedregoso de sua infância.

Como ficção, Alfred e Emily são figuras curiosamente abstratas, que ganham corpo com poucos detalhes psicológicos; a exemplo dos personagens dos livros mais recentes e também mais fracos da autora, como O Sonho Mais Doce (Companhia das Letras), tais figuras são apenas contornos aos quais se atribuem uma ou duas características marcantes.

Os dois personagens sugerem que Lessing teve dificuldades para imaginar a mãe e o pai como outras pessoas que não os próprios pais, ou, a propósito, imaginar uma realidade da qual ela mesma não fizesse parte.

Serviço: Alfred e Emily, de Doris Lessing. Tradução de Beth Vieira. Companhia das Letras, 272 págs., R$ 49.

Tradução de Christian Schwartz.

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