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 | Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo

Entre as várias latitudes em que estive em Portugal, apenas uma foi fundada pela literatura. Seguindo as margens do Rio Douro, entra-se nas páginas de um livro publicado em 1900 – “A cidade e as serras”, de Eça de Queirós.

Estive cinco dias hospedado em Tormes, localidade que nasceu não da presença de seres reais, mas da ficção. Foram os personagens inventados pelo romancista que deram a designação a este território queirosiano em Santa Cruz do Douro. E todos da região agora, mesmo os que não leram a obra, sabem onde fica a quinta de Eça.

Chega-se ao epicentro de “A cidade e as serras” pelo Caminho Particular de Tormes. Logo no começo, está a morada do caseiro de Jacinto, o Silvério. Foi onde me hospedaram. Ia a pé todos os dias para a sede da Fundação Eça de Queirós, a algumas centenas de metros, onde dei um curso sobre o autor.

Em um final de tarde, resolvi fazer o Caminho de Jacinto, uns três quilômetros entre a casa e a Estação Ferroviária de Aregos (às margens do Douro), também rebatizada como Tormes. A ficção se infiltrou por tudo.

Este caminho é uma ladeira com trechos calçados. Fui perguntando o rumo nas casas à margem até me perder e andar quase duas horas para chegar ao destino.

Na volta, fiz o percurso certo sob árvores, ao lado de centenários muros de pedra que sustentam os socalcos. Anoitecia, eu com um cajado de improviso, a lua cheia a me espiar.

Na Fundação, divertiram-se com o fato de eu ter me equivocado nesta travessia de uma paisagem literária.

– É para que fiquemos um pouco fora da realidade que existe a literatura – falei.

No dia seguinte, resolvo descer de novo a serra para visitar o hóspede maior da região, residindo ao lado da igreja de Santa Cruz do Douro. Desta vez tomo o cuidado de me informar com uma funcionária da Fundação o melhor trajeto.

Metade do percurso no Caminho de Jacinto e outra metade no Caminho do Ribeiro. Por esta rota, chego à lateral do cemitério, que está fechado, mas me explicaram que é só forçar a maçaneta do portão de ferro datado de 1877.

É difícil achar Eça de Queirós, que fica no extremo do campo santo. Pululam cruzes, imagens religiosas, pedras polidas, fotos nas lápides, mas o túmulo do grande ímpio é apenas uma laje de granito rústico, com a inscrição de seu nome completo.

Fiquei satisfeito com tanta sobriedade.

Em poucos minutos, esgotamos, Eça e eu, o que tínhamos para falar. E voltei a subir a serra, refletindo que depois de mortas as pessoas preferem prudentemente o silêncio.

Enquanto percorria trilhos úmidos, cheios de mato, contornando canais de água, escalando pequenos morros, lembrei-me que Fernando Pessoa e Alexandre Herculano estão sepultados em um lugar nobre em Lisboa, no Mosteiro dos Jerônimos, e que não senti nenhuma emoção no túmulo deles, por onde passam milhares de turistas. Já para visitar este outro mestre é preciso fazer o mesmo caminho de retorno ao campo de seu personagem.

Passando por parreirais, por casas de agricultores, sob um sol senegalês, numa subida violenta, o cronista se divertia por estar conquistando a memória muscular de um romance.

Miguel Sanches Neto tem 35 livros publicados. Ele vive em Braga e escreve a série “Cartas de Portugal” para a Gazeta.
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