Como surgiu a ideia de reunir e fazer um recorte da poesia erótica produzida no Brasil?
A minha principal fonte de inspiração foi um esboço de prefácio a Macunaíma, escrito em 1926 e jamais publicado, em que Mário de Andrade observava que, no Brasil, as literaturas populares eram frequentemente pornográficas, apesar da ausência de um erotismo literário sistematizado no país. Para justificar seu argumento, o autor evocava as produções eróticas de outros povos, como os gregos, os franceses ou os indianos, que souberam organizar suas expressões escritas em torno do sexo. Mas essa tradição realmente não existia entre nós e, ao pesquisar o assunto, o que me surpreendeu mais ainda é que, passados mais de oitenta anos dessa afirmação do escritor, a erótica literária brasileira continuava desconhecida, aguardando uma compilação.
Antologia reúne poesia erótica do Brasil
Elaborada por Eliane Robert Moraes, “Antologia da Poesia Erótica Brasileira” agrupa a lírica de Eros feita no país
Leia a matéria completaNão preciso dizer que as ponderações de Mário de Andrade estão na origem desta Antologia da Poesia Erótica Brasileira que organizei, e que vem dar testemunho não só da existência de uma lírica erótica no país, mas também de sua extraordinária riqueza. A quantidade e a qualidade da produção poética nela apresentada – sendo apenas parte de uma extensa pesquisa que levantou por volta de trezentos poetas e mais de mil poemas – não deixa dúvidas sobre a convicção de que, para se formar tal corpus, talvez só estivesse faltando um empenho de organização.
Por que “Antologia da Poesia Erótica Brasileira” e não pornográfica?
Costumo usar os dois termos indiscriminadamente, como sinônimos. Ou seja, essa poderia muito bem ser uma Antologia da Poesia Pornográfica Brasileira... Não ignoro, porém, que o senso comum traça uma forte distinção as duas palavras: o pornográfico seria o que “mostra tudo”, enquanto o erótico seria “o velado”. Contudo, para o estudioso do erotismo literário, essa distinção é falsa, senão moralista... A rigor, livros como os do marquês de Sade, de Henry Miller, de Hilda Hilst ou de Reinaldo Moraes, são muito mais obscenos do que a pornografia comercial de uma Bruna Surfistinha ou de uma E L James. A diferença entre eles não está no grau de obscenidade, mas na composição formal: o valor de um texto nunca se mede por sua moralidade, mas por sua qualidade estética.
No prefácio do livro você escreve que não há erotismo sem fantasia, assim como não há literatura sem ficção. Há literatura totalmente desprovida de erotismo?
Puxa, difícil responder... O que posso dizer é que, quando se fala em literatura erótica, está se falando de uma literatura que mobiliza um tema específico: o sexo, a sensualidade, o erotismo. É um tipo particular de texto que mobiliza diversos gêneros literários, manifestando-se tanto na prosa quanto na poesia: há romances eróticos, sonetos eróticos, poemas em prosa eróticos e assim por diante. Mas veja, há inúmeros livros em que o erotismo é um elemento forte, mas não dominante, como por exemplo Grande sertão: Veredas ou Madame Bovary. E há aqueles que abordam o universo, as pessoas, os sentimentos e toda sorte de experiência humana unicamente a partir do sexo, fazendo do erótico a embocadura soberana para determinada leitura de mundo. Estes compõem o corpus do que chamo de literatura erótica.
A essência da literatura erótica também está na marginalidade e em estar sempre sendo difundida em círculos restritos da sociedade?
A questão da clandestinidade, do anonimato e da censura, para citar apenas alguns termos que compõem essa marginalidade, é sempre histórica. Em termos estritamente estéticos, a erótica literária caminha em paralelo aos movimentos e às mudanças da literatura em geral. Contudo, por implicar questões morais, essa produção específica também sempre foi marcada pelas transformações históricas. Como se sabe, muita coisa mudou ao longo desses quatro séculos, a começar pelo próprio estatuto do texto obsceno, que enfrentou obstáculos significativos para ser reconhecido como literatura. Cabe lembrar que, até pouco tempo, a expressão moderna do erotismo literário foi objeto de reiteradas proibições nas sociedades ocidentais, sendo não raro produzido e difundido na clandestinidade. Essa característica não foi diferente no Brasil, cuja história traz fortes marcas da moral cristã e do jugo patriarcal que, aliados a outras formas de repressão, também precipitaram mecanismos eficazes de censura às manifestações licenciosas. De certa forma, esta Antologia da poesia erótica brasileira conta um pouco dessa história.
Na Antologia está o escritor Gregório de Matos, além de Álvares de Azevedo, expoente do romantismo, e alguns contemporâneos como Roberto Piva e Ana Cristina Cesar. Existe proximidade na composição estética dos escritores? Qual a maior diferença entre eles além do espaço e do tempo?
De fato, a Antologia apresenta um conjunto extenso e plural da nossa lírica, reunindo nomes que vão desde Gregório de Matos, do século XVII até poetas contemporâneos, alguns dos quais ainda vivos. Inclui autores canônicos, como Castro Alves, Olavo Bilac, Gilka Machado, Mário de Andrade, Vinicius de Moraes, Paulo Leminski, Ferreira Gullar ou Arnaldo Antunes – por vezes publicados originalmente sob pseudônimos –, e outros menos conhecidos, como Francisco Moniz Barreto, Múcio Teixeira ou Moysés Seyson. E incorpora ainda alguns anônimos que praticaram o gênero nesses quatro séculos da nossa poesia! Além disso, os poemas se alternam entre a sensualidade meramente alusiva e a obscenidade mais provocante, o que torna o conjunto ainda mais plural.
Ou seja, para além da visada erótica, são tantas as diferenças que é quase impossível buscar um denominador comum entre esses poetas. Mas, dito isso, vale atentar para o fato de que, nesta coletânea, todos eles dão voz a um excesso que é, antes de tudo, o da imaginação.
A erótica presente na palavra consegue ser mais performática do que a imagem?
Acho que cada arte tem seu gesto estético, ou seja, sua forma particular de performatizar o erotismo. Ainda que a indústria cultural se esforce ao máximo para padronizar a erótica, na sua origem Eros é sempre plural...