Já é tradição na literatura, e isso em âmbito mundial, o fato de um objeto físico deflagrar lembranças aparentemente adormecidas em um personagem. As madeleines (bolinhos), que o escritor francês Marcel Proust inseriu no monumental Em Busca do Tempo Perdido, são mais do que famosas: tornaram-se clássicas, referências com as quais muitos escritores dialogam continuamente. Outro exemplo do recurso é o envelope que chega até o protagonista do romance Quase Memória, de Carlos Heitor Cony: a partir do mero contato visual com o pacote, todo um passado se revelará.
No romance No Teu Deserto, do escritor português Miguel Sousa Tavares, são algumas fotos encontradas pelo narrador dentro de uma gaveta que trazem à tona um passado que será recuperado durante a complexa e longa narrativa. Ele é um personagem que não tem o seu nome revelado, e (a exemplo do autor) um jornalista português. Há 20 anos, ele viajou pelo deserto do Saara acompanhado da personagem Claudia, bem mais nova do que ele. Os dois viveram, durante 40 dias e 40 noites, uma experiência, inequecível. Ao regressar a Portugal, eles se separaram. Nunca mais tiveram contato.
A utilização do Saara como cenário não foi aleatória. Tavares usou o deserto para dialogar com a ideia de um paraíso perdido. Primeiro, porque o deserto foi o local onde ele experimentou aquela que seria a sua grande aventura. Interessante é que o narrador não descreve, nem menciona, cenas dos encontros amorosos. O envolvimento corporal é omitido. Mas essas situações, que aconteceram, mesmo não citadas, talvez até por isso, ficam sugeridas o tempo todo.
O texto também sugere outra signficação para o deserto. A viagem, realizada durante a década de 1980, era uma aventura que oferecia risco de morte. Mais que isso. Não havia aparelhos de GPS, telefone celular e outros recursos que viabilizam comunicação instantânea e rastreamento do ser humano. O deserto, naquele contexto, representava ainda uma garantia de isolamento. Era um convite para a solidão, oportunidade para que uma pessoa pudesse se encontrar com ela mesma, o que hoje parece algo muito difícil de acontecer.
"As coisas mudaram muito. Todos têm terror do silêncio e da solidão e vivem a bombardear-se de telefonemas, mensagens escritas, mails e contatos no Facebook e nas redes sociais da Net, onde se oferecem como amigos a quem nunca viram na vida. Em vez de silêncio, falam sem cessar; em vez de se encontrarem, contactam-se, para não perder tempo; em vez de descobrirem-se, expõem-se logo por inteiro", diz o narrador, na página 116 de No Teu Deserto.
Portugal, para o narrador, depois daquela viagem ao Saara, tornou-se um deserto. Ele adquiriu rugas, os seus cabelos ficaram brancos, o cheiro de sua pele se modificou, mas a grande questão mal resolvida para o personagem foi a ausência de Claudia. Viver, sem ela, era um imenso vazio, que não se preencheu nunca.
O escritor curitibano Jamil Snege (1939-2003) costumava repetir que "o grande amor é o que não deu certo". E essa afirmação define a condição do narrador de No Teu Deserto. A personagem Claudia foi o grande amor da vida dele, justamente o amor que fracassou.
O que o personagem "viveu" só se transformou em palavras, tempos depois, porque ele soube calar, a exemplo que revela um dos trechos mais líricos, fortes e epifânicos do livro: "Escrever não é falar. Não? Qual é a diferença? É exatamente o oposto. Escrever é usar as palavras que se guardaram: se tu falares de mais, já não escreves, porque não te resta mais nada para dizer". GGGG
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Serviço
No Teu Deserto. Miguel Sousa Tavares. Companhia das Letras. 124 págs. R$ 30.
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