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Sempre espera-se que apenas os mais jovens realizem algo ousado, seja no campo artístico ou em qualquer área do conhecimento. Mas, no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro 2005, realizado em novembro passado, quem realmente incomodou o público com uma proposta cinematográfica ousada esteticamente foi um cineasta de 74 anos, remanescente da geração do Cinema Novo.

O moçambicano Ruy Guerra (Os Fuzis, Os Cafajestes, Ópera do Malandro, Estorvo), radicado desde 1958 no Brasil, apresentou no evento candango O Veneno na Madrugada, seu 25.º longa-metragem, que deverá chegar aos cinemas do país em 3 de fevereiro de 2006. O filme recebeu apenas os troféus de melhor fotografia (para o onipresente Walter Carvalho) e direção de arte (Marcos Flaksman), mas o próprio cineasta ou alguns de seus atores principais – Leonardo Medeiros, Juliana Carneiro da Cunha, Fábio Sabag – poderiam ter sido lembrados pelo júri oficial.

Adaptação personalíssima da obra La Mala Hora, de Gabriel García Marquez, a produção de época retrata 24 horas na vida dos habitantes de um vilarejo sul-americano, assolado por uma chuva intermitente. A trama apresenta mudanças temporais que confundem o público, além de outros elementos que deixam o espectador inquieto, como o fato de a fita ser inteiramente dublada.

Em entrevista exclusiva ao Caderno G durante o Festival de Brasília, Ruy Guerra comenta seu interesse por novas tecnologias e pela Física e ciências em geral, relatando como esses elementos têm influenciando seu trabalho. O experiente cineasta também fala sobre sua geração e a nova safra de diretores brasileiros, para os quais ele tem muitos elogios.

Caderno G – No debate de O Veneno da Madrugada no Festival de Brasília, o senhor demonstrou uma certa empolgação com as novidades tecnológicas na área de cinema. Como as têm utilizado em seu trabalho?Ruy Guerra – Interesso-me sempre pela técnica. Mas tenho um cuidado, quero manter uma certa distância, procuro estabelecer sempre relações muito claras entre a técnica e o filme. Acho que a tecnologia seduz muito os criadores, não só no nível do cinema, mas muitas vezes ela aborta um pensamento estético. Então, antes de abordar qualquer problema de ordem técnica, quero saber muito bem o que é essa tecnologia para não ser vencido por ela.

O que acha do cinema digital?Eu vejo o cinema digital como uma coisa extremamente interessante, mas acho que há uma aproximação um pouco errada em relação a ele. As pessoas não estão tendo uma reflexão real sobre uma estética digital. Elas abordam o digital apenas sobre o ponto de vista econômico. De uma certa forma, é uma técnica que democratiza o acesso à imagem, permite que ela não seja esse tabu do celulóide, que é caro. O digital está trazendo muitas contribuições no documentário. E esse acúmulo de experiência vai criando uma estética digital, ainda que difusa e não-conceituada. Mas quando se passa para o nível da ficção, o digital enfrenta dois problemas. O primeiro é a própria limitação da imagem digital – mas isso pode ser vencido com a evolução da tecnologia. O segundo é um mal-entendido sobre o custo de um orçamento de filme. Faz-se o filme em digital e fica se postergando para a finalização os custos. Mas passar um filme para película é muito caro também. E não é porque é digital que não haverá custos com a produção, é preciso remunerar a equipe, tem o aluguel das locações. Esse problema será respondido com a criação dos circuitos de distribuição digital. Estamos fazendo uma matriz digital de O Veneno da Madrugada para entrar no circuito comercial. É um caminho para baratear o lançamento, pois não serão necessárias tantas cópias em película. Mas estou pensando em um projeto para digital, com uma leveza de ação, um filme menor, que caiba dentro dessa linguagem.

O senhor declarou estar contente com a novíssima geração do cinema brasileiro. O que ela tem feito de interessante em sua opinião?Há uma reunião de jovens diretores que já deram provas de que se pode apostar neles – Tata Amaral (Um Céu de Estrelas), Lírio Ferreira e Paulo Caldas (Baile Perfumado), Karim Aïnouz (Madame Satã), Andrucha Waddington (Casa de Areia), Beto Brant (O Invasor), Marcelo Gomes (Cinema, Aspirinas e Urubus). Eles não estão obedecendo a estéticas importadas, estão tocando suas próprias estéticas e colocando na cultura brasileira novas temáticas e linguagens para traduzir o olhar que têm sobre a realidade do país. Isto é extremamente rico. Estão procurando um diálogo direto com a linguagem cinematográfica, com o objeto que estão querendo traduzir em imagens. Esta postura estética e política é muito importante.

Mantém contato com o pessoal de sua geração, acompanha o cinema que eles fazem?Tenho contatos afetivos, que não chegam a ser profissionais, até porque a relação entre diretores é sempre muito difícil. Nos encontramos, mas não damos o roteiro um para o outro ler, não temos discussões ou troca de opiniões. Eu não sei como o Nelson (Pereira dos Santos, de Vidas Secas, Rio 40 Graus) trabalha e nem ele sabe como eu trabalho, e nos conhecemos há 40 anos. O Nelson retomou a ficção agora, está terminando um filme (Brasília 18%) e ainda não sei como vai ser. O (Júlio) Bressane lançou um filme há dois anos que qualquer cinematografia inteligente do mundo se sentiria orgulhosa de ter. Filme de Amor é extraordinário, tenho inveja, gostaria de ter feito esse filme. Infelizmente está fora da minha sensibilidade, da minha linguagem e capacidade de fazer, senão certamente teria feito (risos).

Também no debate em Brasília, o senhor afirmou que tem lido muito sobre Física e que tem incorporado o tema em seu trabalho, como fez em O Veneno da Madrugada. Explique melhor essa relação.A Física e as ciências em geral estão influenciando meu trabalho. Estão terminando um roteiro para mim que tem com base uma estrutura temporal tirada de uma frase do Freud. Cito isso para lembrar que as reflexões do pensamento não estão fechadas dentro do processo criativo do "artista". As pessoas que mais deliram são os cientistas. Tenho um livro extremamente sintomático sobre esse tema, que tem entrevistas de grandes cientistas apresentando suas concepções do mundo, e cada um diz uma coisa contrária do outro. São pessoas que conhecem toda a trajetória do ser humano na Terra e cada uma tem uma visão que você pega e diz que ele é um louco, tem que amarrar e mandar para o hospício numa camisa de força. E isso é riquíssimo, uma espécie de imaginativo a partir de postulados da própria experiência como profissionais da ciência. Confrontei-me com isso e vi que o grande imaginário está na ciência. Comecei a colocar uma questão que qualquer artista se colocaria, mesmo inconscientemente, que é a relação entre o que é verdade e o que é verossímil. Nós temos que trabalhar só com aquilo que o público acha que é passível de ter acontecido ou podemos trabalhar com coisas que não aconteceram ainda? Eu sempre digo para mim mesmo que é a ficção é a realidade que ainda não aconteceu, mas vai acontecer mais adiante. "Ah, mas isso não é verossímil, não dá para acreditar." Acho que essa fronteira entre o verossímil e o verdadeiro é uma fronteira da criação. Você tem que ter coragem de contar histórias inverossímeis que aconteceram e tem que ter coragem de contar histórias inverossímeis que ainda não aconteceram e que vão acontecer, ou não. Existe uma ditadura da lógica com a qual não sei lidar. Quero fugir da lógica, quero emoção e reação. O que não podemos deixar é que esse velho aforismo da realidade ultrapassar a ficção aconteça sistematicamente. Nós ficcionistas estamos trabalhando numa corvadia estética. Não temos coragem de olhar a realidade como um objeto passível de ser transformado em um palco de reflexão.

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