Em 1988, quando saí pela primeira vez do Brasil – rumo a Machu Picchu pelo portal da rota hippie, o Trem da Morte (de Corumbá para Santa Cruz de la Sierra) –, pensei algo que me marcou para sempre.
Viajar é ampliar quem somos.
Este tipo de viagem que nos acrescenta outras formas de ser só ocorre quando criamos uma sintonia com espaços e hábitos diferentes.
12 minutos
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No final dos anos 1990, minha mulher e eu percorremos aqueles caminhos embalados pela leitura devota de As Veias Abertas da América Latina, o ensaio político-poético de Eduardo Galeano. Queríamos vestir uma parte da identidade latino-americana, para deixarmos de ser apenas brasileiros, algo difícil em uma cultura em que prepondera um imaginário norte-americano. Os jovens que entraram na Bolívia e no Peru fizeram uma imersão que se queria literária. Este deslocamento gerou um roteiro em escrita telegráfica, posteriormente publicado no jornal Nicolau com o título “Hasta mañana, Peru”. Foi meu primeiro texto longo, uma espécie de nascimento do escritor.
Quase 30 anos depois, voltamos ao trajeto inicial da viagem para pesquisar cenários para meu novo romance. A primeira diferença se revelou na estação de Puerto Quijarro, fronteira da Bolívia com o Brasil. No passado, embarcamos em um pátio de manobras, com um grande tumulto de viajantes. Quando o trem chegou, foi uma babel de pessoas com caixas e sacolas. Eu descobriria depois que eles compravam produtos industriais no Brasil para revender em Santa Cruz de la Sierra. Fomos aconselhados, por um boliviano, a jogar no corredor todas as bagagens que estivessem em nossos assentos. E fizemos exatamente isso, pois o vagão de passageiros tinha se transformado em um compartimento de carga.
Naquela viagem, optamos pelo vagão comum para ficar no meio do povo. Éramos poucos estrangeiros, pois o trem servia como principal via de acesso ao Brasil, concentrando uma população que fazia aquele percurso por necessidade. Não era o nosso caso.
Na viagem de agora (em janeiro de 2015), há uma estação nova, com sala de espera, algo impensável décadas atrás. Juliana Sanches e eu ficamos esperando pelo frenesi do embarque, mas tudo foi muito organizado, com um policial armado na entrada – ele viajaria conosco. Não há mais o trem regional e a empresa estimula um esquecimento da época em que esta linha mereceu o nome de Trem da Morte. Pegamos o Expresso Oriente, na categoria super pullman, com poltronas confortáveis, aparelhos de som e de tevê. Pouca gente em todo o trem, a maioria composta por turistas saudosistas que viajavam para se distrair ou reviver um outro tempo da história dos transportes.
Nós nos sentimos meio frustrados. Onde estariam as pessoas comuns que antes usavam este meio de locomoção?
Viagem lenta
Saímos às 13 horas de um domingo, sob chuva, atormentados por uma música brega gritada por todos os alto-falantes do vagão. Pedi para abaixar o volume e o funcionário, um senhor simpático, disse que sim, eu poderia dançar ali com minha mulher. Logicamente que o som continuou vibrando como em uma casa de show. E ninguém dançou.
Na margem da ferrovia, muitas casas simples, com porcos soltos pelos quintais e pelas ruas; este foi o primeiro vínculo com aquela outra temporalidade. A cada estação, grupos de mulheres e crianças entravam para vender comidas regionais, forçando-nos ruidosamente a participar daquele mundo.
Seriam 14 horas de viagem para vencer pouco menos de 600 quilômetros. Neste mesmo período, um viajante de avião poderia ir à Europa tranquilamente. Sem almoço, acabamos, no meio da tarde, no carro-restaurante, comendo com receio os pratos do dia – frango ou porco frito, com arroz e salada. Mas fazer uma refeição com o balanço do trem criou uma sensação boa, ampliada pela visão de paisagens de matas típicas do pantanal, entrevistas pela janela. A janta foi em uma estação, onde o trem para meia hora – em Roboré. Em cada lado do prédio antigo, uma cobertura com bancas de comida, principalmente espetinhos de frango e de porco, com um pedaço de mandioca cozida espetado na ponta. O cheiro de carne assada toma conta do lugar.
Depois de muitas paradas, de movimentos no corredor, de descidas breves nas estações para esticar as pernas, chegamos à imensa Estação Bimodal de Santa Cruz às cinco e pouco da manhã. Todos tiveram que sair imediatamente, pois o local só abre às 6. Lá fora, o dia amanhecendo e a confusão de carros.
O escritor
Miguel Sanches Neto é autor de 35 livros que percorrem vários gêneros literários. Pela editora Intrínseca, ele acaba de publicar “A Segunda Pátria”, imaginando o que teria acontecido ao Brasil se os nazistas tomassem conta do país na primeira metade do século 20. Ele vive em Ponta Grossa, no interior do Paraná.
Centro de Santa Cruz
Arranjar um táxi é sempre uma aventura. A maioria dos carros é muito velha, pois o país importa do Japão modelos bastante usados. Além das más condições dos veículos, não há taxímetro. Toda corrida tem que ser negociada antes. Esta seria uma das coisas mais marcantes para nós na Bolívia. Os preços não são fixos. E muitos profissionais solicitam que façamos a proposta de valor.
Passamos o dia pela cidade. O que mais me chamou a atenção na visita anterior foram as varandas nos comércios centrais. As construções baixas, com telhas coloniais, tinham telhados cobrindo todas as calçadas. É como um grande shopping a céu aberto. O boliviano chama isso de corredor. Estava ansioso para ver se as varandas haviam sobrevivido. E me encantou reencontrar este detalhe arquitetônico. Muitas telhas foram trocadas, o que diminuiu um pouco o charme dos corredores, porque sobre as antigas havia pequenos cactos em flor. No entanto, algumas permanecem inalteradas.
Além das varandas, também nos deslumbraram as salteñas, um salgado tipo pastel assado, de carne de frango ou porco, com ou sem pimenta, e vários condimentos num molho agridoce. Uma das coisas mais saborosas que já experimentei. Existem muitas salteñerias, mas meu instinto para descobrir lugares antigos me levou até o Jet set – há mais de 50 anos no mesmo lugar, uma casa que produz as melhores salteñas da Bolívia, em um processo totalmente artesanal.
No mercado Los Pozos, nos deparamos com a diversidade dos produtos tal como em mercado popular do Norte ou Nordeste brasileiros, com carnes sendo vendidas sem refrigeração ao lado de tudo que pudermos imaginar. Nas bancas de comida, em pleno café da manhã, muita gente enfrentando sopas, carne assada e outros pratos fortes.
Montanha acima
No dia seguinte, fomos até a Praça Oruro pegar o ônibus para Vallegrande, destino final de nossa viagem em busca da Ruta del Che. Não há horário fixo para a saída dos ônibus. A partir das 9 da manhã, eles vão partindo quando completam a lotação. Várias empresas fazem o mesmo percurso, com preços diferentes. Ao chegarmos, havia apenas uma disponível – chamada providencialmente de El señor de los milagros. A mais barata. E com o veículo mais precário.
Foram 6 horas por montanhas, em asfalto estreito, em vários pontos interrompido por terra, pedras e água que descem dos morros, por se tratar da temporada das chuvas. Apenas nós dois de estrangeiros, o que nos colocou em contato intenso com os moradores. Compram, nas paradas, comida em saquinhos plásticos, contendo ovo cozido, carne defumada, milho, batata e arroz – pelo que pudemos identificar. Mesmo comendo durante toda a viagem, pararam para almoçar no caminho, em um restaurante que servia arroz, salada e frango. Frango, batata e milho são a santíssima trindade do cardápio popular da Bolívia.
Capital da guerrilha boliviana
Em Vallegrande, procuramos a central de informações turísticas, na praça principal, e acertamos uma viagem de dois dias pelos locais em que Che Guevara viveu seus últimos dias. Depois de arrumar um hotel, fomos visitar o mercado para comer pastel de queijo, comprar frutas e conhecer os produtos locais.
À noite, tentamos subir a pé ao restaurante que fica no alto do morro, de onde se tem uma vista total da cidade e do vale. Mas tivemos que pegar um táxi para chegar a El Mirador, onde se vendem camisetas do Che e artesanatos regionais. A cidade toda tem em Che uma referência, pois o guerrilheiro a colocou no mapa mundial. Esta foi a melhor refeição que fizemos em toda a viagem. Conversamos com a dona que falou na segurança da cidade. O único perigo seriam os cachorros na rua. De fato, desde que entramos na Bolívia, não sentimos medo, não passamos por situações tensas.
No outro dia cedo, partimos em um Toyota detonado, com pneus carecas, para Alto Seco, Cordilheira Oriental. Este povoado, hoje com 120 casas, tinha 50 quando Che passou por lá; ele e seu grupo estavam famintos, sem calçados e roupas, já vencidos pela longa fuga em meio a uma seca severa. São duas horas e meia de estradas perigosas, margeando precipícios, e pouco movimentadas, com vacas descansando na pista. Durante o caminho todo, o motorista e o guia que contratamos mascavam coca.
Resolvi experimentar. Retira-se o cabo, enfia-se as folhas na boca, macerando-as levemente; depois com a língua se deposita aos poucos este material entre uma das bochechas e a gengiva. Para formar o bolo, que eles chamam de pijcho, é preciso acrescentar uma pasta muito doce, feita de cinzas de árvores, a lejia ou llujta. A primeira sensação é de amortecimento, como quando o dentista passa xilocaína em nossa gengiva, antes da anestesia. Depois vem um bem-estar. Eles ainda acrescentam bicarbonato.
Antes do fim
Mascando coca, desviando de vacas, passando ao lado de despenhadeiros, depois de ver o voo de um condor, chegamos a Alto Seco. Lugar pobre, onde nada remete à memória de Che. A escola em que eles estiveram no dia 22 de setembro de 1967, falando aos agricultores, não existe mais. Nenhuma referência ao comandante. Procuramos a dona do único lugar que atende viajantes – Elizabeth Gutiérrez, da Pensión El Porvenir, e ela nos indica um senhor que esteve com os guerrilheiros.
Rosaulino Velis tinha 13 anos naquela data e fala emocionado do cansaço e do desânimo do grupo. Conta como foram a chegada, a reunião na escola, as conversas com os homens barbudos, sujos e maltrapilhos. O que mais chamou a atenção dele é que não tinham calçados. Compraram víveres, roupas e sandálias para seguir fugindo.
Rosaulino nos leva a dois lugares. A um morro, que dá uma visão total das entradas da vila, onde ficaram alguns guerrilheiros como vigias. E a uma nascente, ao lado da casa abandonada em que o grupo se escondeu. Na época da seca, com bolhas nas solas dos pés de tanto andar, os guerrilheiros afundavam suas pernas na mina em busca de algum conforto.
“Um deles me disse que tinham tanta sede, em alguns trechos, que lambiam as folhas secas das plantas para sorver o orvalho”, relatou Rosaulino.
Depois de um almoço na pensão, dividindo a mesa com trabalhadores, e de ouvir a reclamação da dona (pois Alto Seco fora abandonada pelos turistas, éramos os únicos em meses), partimos para o coração guerrilheiro da Bolívia: La Higuera, um povoado menor ainda, onde Che e seus amigos foram assassinados.
O fim
Assim que chegamos, no final da tarde, depois de uma chuva intensa de granizo, durante a qual não se enxergava nada, fomos surpreendidos por um vilarejo que se transformou em memorial do Che. As fachadas das casas são decoradas com frases, pichações e retratos. A melhor intervenção diz: “Não à comercialização do Che”. Bingo! Na mesma parede, a definição do lugar como un pueblito rebelde. A forma de ação dos atuais revolucionários é a pichação.
Fomos ver o museu do Che, uma réplica da escola em que ele foi morto depois de ter sido capturado. Somente uma porta encostada numa parede seria do antigo prédio; tudo que temos lá são frases, desenhos e documentos de visitantes. É um altar para os heróis da frustrada revolução.
Na pracinha central, um busto pequeno de Guevara e outro imenso, meio grotesco, este sobre uma pedra, onde os turistas sobem para ser fotografados. Há ainda uma estátua agigantada, igualmente mal feita. Tudo é rudimentar e adolescente nessas manifestações artísticas. Che sofre uma espécie de banalização sentimental em frases e monumentos.
Dormimos numa pousada precária. No outro dia, por causa da chuva muito intensa, não fizemos o caminho até o lugar onde Che foi preso (Quebrada del Churo), depois da denúncia de um dos camponeses. Na época, o pueblito não era tão rebelde, mas se tornou assim com o tempo, quando se fez um dos centros das romarias de revolucionários.
O grande ausente
Na volta para Vallegrande, visitamos a famosa lavanderia, onde o corpo de Guevara esteve exposto para jornalistas e para a população local. Che havia entrado no imaginário da região por conta da campanha do governo para capturá-lo. Praticamente a cidade toda, na época, passou diante de seu corpo numa área semiaberta do hospital da cidade, onde se lavavam as roupas. Hoje, as paredes e a própria pia em que o corpo foi depositado estão tomados por frases dos visitantes. A melhor delas: “Se todos os que aqui escrevemos nos uníssemos, o que aconteceria?”.
Ao lado, no necrotério onde tiraram as mãos de Che para enviar ao presidente, há mais inscrições. Depois de ler o máximo delas, seguimos para fora da cidade, rumo ao campo onde Che foi enterrado anonimamente, para que não se tornasse um local de culto. Quase 30 anos depois, este túmulo coletivo dos guerrilheiros foi localizado, as ossadas identificadas e mandadas para Cuba; mas sobre o chão agora vazio se fez um memorial.
Caminho de volta
Foi depois de saber que muitos veem Che como santo (há até um missa da saúde em seu nome, mandada rezar pelos doentes) que concluímos a rota, começando o caminho de volta, que sempre é mais rápido.
Na conversa com vários bolivianos e também tentando observar as mudanças para compor um quadro mental comparativo, percebemos uma melhoria acentuada na infraestrutura do país. Há mais estradas, obras governamentais em vários pontos, o que indica a construção de um futuro nacional. Por outro lado, esta melhoria não teve ainda maiores impactos no cotidiano das populações socialmente fragilizadas. Continuam, guardadas as diferenças históricas, num patamar muito parecido ao da época em que Che Guevara esperava contar com a adesão delas à luta – o que não ocorreu.
Ao chegar à alfândega, tivemos que aguardar por mais de cinco horas numa fila, sob um sol calcinante, para regularizar a documentação. E então descobrimos a razão de não haver mais tantos moradores locais usando o Expresso Oriente. É que foi construída uma rodovia que reduziu pela metade o tempo de viagem, aproximando Brasil e Bolívia.
Depois da extenuante espera, fomos à rodoviária de Corumbá, para pegar um ônibus para Campo Grande. O terminal estava cheio de bolivianos que tinham praticamente o mesmo destino – São Paulo, onde tentariam a sorte. Conversei com alguns deles, todos muito agradáveis, educados e conformados com o atraso burocrático na aduana.
Para eles, esta entrada no Brasil talvez seja a revolução pessoal possível a curto prazo.
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