| Foto: Celso Margraf/Gazeta do Povo

Romance sobre a vida literária não tem unidade

Chá das Cinco com o Vampiro, de Miguel Sanches Neto, não fala da relação de um pupilo com o mestre, mas de um pupilo à procura de um mestre. Nessa busca, ele encontra Geraldo Trentini, um contista gigante, um homem que não poderia se importar menos com pupilos (mas adora a atenção que recebe de todo mundo).

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Chá das Cinco com o Vampiro havia se tornado um mito. Muitos comentavam o livro, mas poucos aceitavam sua existência. Era a obra em que Miguel Sanches Neto destrinchava a amizade com Dalton Trevisan. Diziam que era o acerto de contas. O grito de independência. A vingança.

Vingança de quê?, pode perguntar o leitor. Difícil dizer com certeza. Talvez dos ataques desferidos por Trevisan no poema "Hiena Papuda", em que chama Sanches Neto de "traveca de araponga louca da meia-noite", para citar um verso que pega pesado. Se o poema foi uma vingança à existência de um romance que falava sobre a relação dos dois, a publicação de Chá das Cinco..., o dito-cujo, também o é. O livro que vampiriza o vampiro.

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"Depois das agressões que recebi, eu me tornei mais exigente em relação a esta obra, perdendo um restinho de inocência. O fato é que o meu livro está pressuposto na ficção de Trevisan, é um subproduto dela, ele queira ou não", diz Sanches Neto, colunista da Gazeta do Povo e autor dos romances Chove Sobre Minha Infância e A Primeira Mulher.

Não bastasse o rebu causado pela referência à Trevisan – "Vampiro", alcunha do contista, aparece já no título –, Chá das Cinco... tem personagens inspirados em pessoas de RG e CPF, como os escritores Valêncio Xavier (1933-2008) e Wilson Bueno, o jornalista Fabio Campana, o crítico Wilson Martins (1921-2010) e o cineasta Fernando Severo.

Na entrevista a seguir, o autor não titubeia ao responder questões difíceis suscitadas pelo romance que sai agora pela Objetiva e admite guardar mágoa de Trevisan.

Na página da Objetiva sobre o Chá das Cinco com o Vampiro, na internet, você disse que "todos os personagens são seres de ficção – valem pelo que representam dentro do romance, e não fora dele. Digamos que é a minha versão para o Ilusões Perdidas, do Balzac". Hoje, numa comparação com o século 19 de Balzac, os limites entre o público e o privado estão menos claros. Há uma indústria (revistas, televisão, livros...) que vive da intimidade e da privacidade alheias, ainda que sejam mais ou menos fabricadas – ou ficcionalizadas. O que pensa de ver seu livro se beneficiar desse contexto?

Nunca me interessei pelos livros ou matérias que tratam da intimidade de personalidades, nem mesmo como leitor. E não foi minha intenção produzir nada nesta linha, embora, logicamente, o livro possa acabar lido assim. O que seria a pior forma de se aproximar dele, porque o leitor com tal pretensão não vai encontrar lá o que busca. Qualquer leitura direta desentenderá um livro que não trata de pessoas de forma simplista, trata de experiências que me pertencem, e que eu transpus para uma estrutura narrativa de caráter inventivo. O que conta não é este ou aquele personagem lembrar fulano ou beltrano, mas que tudo funcione para constituir um relato que se sustente. Em nenhum momento antes da escrita, tomei notas ou coletei material para usar depois. O que aparece no livro é uma percepção de pessoal de um meio visto alegoricamente. Agora, sei que não posso ter controle sobre a leitura do livro. Mas sei também que não fiz nada que outros escritores não tenham feito, e que eu próprio já não tenha tentado. Chove Sobre Minha Infância (2000) foi escrito a partir de minha família, usando os nomes reais e até reproduzindo fotos. E no entanto era um livro de ficção. Não causou nenhuma polêmica porque o grupo retratado não tinha poder no centro do campo cultural. E a imprensa não achou aquilo um abuso. Chá das Cinco... não tem nada de diferente do que eu não tenha praticado em outras obras e mesmo na minha coluna de crônicas.

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No blog sobre Chá das Cinco com o Vampiro, você defende o "pacto ficcional" do romance com o leitor, dizendo que "Tudo que a linguagem ficcional toca se transforma em matéria de ficção. Caso contrário, o próprio Dalton teria que ser acusado de satirizar pessoas reais, que se identificam em sua obra cáustica". No caso de Chá das Cinco com o Vampiro, você cria nomes fictícios que ecoam os de pessoas que caminham (ou caminhavam) por aí, seja pelas iniciais, pela grafia ou pelos sons das palavras. Você deixa um rastro de pistas, falsas ou não, como se quisesse criar ficção e, ao mesmo tempo, comentar a realidade fora do livro. Mesmo que essa não tenha sido sua intenção, não se pode negar que se trata de uma leitura possível. Por que, ao fazer ficção, você procurou deixar tantas costuras à vista?

Porque esta é minha marca enquanto escritor desde Chove Sobre Minha Infância, meu livro de estreia; porque aprendi isso com vários escritores, pois boa parte dos autores realistas trabalha nesta linha; porque me fiz aprendiz de um escritor que sempre criou ficção se valendo destes recursos, na indefinição entre retrato e ficção. Pegue, entre inúmeras possibilidades, o texto "Canção do Exílio", do Dalton Trevisan, publicado em Pão e Sangue (1988). Ali há uma galeria de nomes ou de apelidos de pessoas de Curitiba que são ironizadas – "o Fafau e o Xaxufa gorjeando versinhos/ na missa das seis na Igreja da Ordem/ o trêfego Jaime batia palminhas etc. etc.". São personalidades facilmente identificáveis da vida política e cultural da cidade. As pessoas aparecem com o nome real – o texto fala de um Sílvio que irá filmar a sua vida. Que Sílvio é cineasta no Paraná? E, no entanto, todo mundo leu o texto como peça literária, porque foi este o pacto proposto pelo Dalton – estava lá na ficha técnica do livro: contos. Quem nunca fez isso que atire a primeira pedra.

A programação de lançamentos da editora Objetiva, enviada ao jornal por e-mail, listava Chá das Cinco com o Vampiro como "não-ficção". Agora, o livro sai como romance. Ainda que tenha sido um erro da editora, é um erro curioso. O embate entre fato e ficção é uma discussão antiga na literatura e, paradoxalmente, ainda não faz parte do senso comum – exemplo é a cobertura dada ao seu livro até aqui: um jornal chegou a usar mais fotos de Trevisan do que suas. Ainda que você negue, muitos devem ler o romance como um relato inspirado na sua relação com Dalton Trevisan. Afinal, por que você usou "Vampiro", o apelido que identifica Trevisan, já no título da obra?

Eu não sabia deste e-mail da editora, mas eu nunca pensei este livro como outra coisa fora da ficção. Deve ter sido um erro de digitação. Quanto ao fato de terem usado fotos do Dalton maiores do que a minha, isso se dá pela mania do contista de não se deixar fotografar, criando uma valorização excessiva de suas imagens, e não pela existência de meu livro. Da minha parte, tenho a dizer que não premeditei esta polêmica, e se ela está acontecendo é porque faz parte da natureza do livro, do olhar do autor e também das figuras que se veem espelhadas nos personagens. Usei a palavra "vampiro" por não caber outra. Eu queria mostrar certo aburguesamento de alguém que toma chá das cinco enquanto posa de animal noturno. Quis explorar uma contradição. Poderia ter usado a palavra nosferatu – mas daí eu perderia a rima (cinco/vampiro). E isso enfraqueceria o título.

"A literatura é para mim uma tentativa de superação ou de convivência com a orfandade." Essa frase sua traduz um dos temas de Chá das Cinco com o Vampiro, em que o protagonista, Beto Nunes Filho, o jovem que vem do interior do estado, procura estabelecer uma relação de pupilo/mestre com o célebre escritor Geraldo Trentini, mas este não parece disposto a assumir o papel. O pecado do "mestre" teria sido então a indiferença. Como foi sua experiência com Trevisan, a relação de vocês era mesmo de mestre e pupilo? Você guarda alguma mágoa de Trevisan?

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Claro que guardo mágoa, a mágoa do leitor devoto, que se dedicou intensamente à leitura de uma obra, fazendo de tudo para compreendê-la – basta ver as dezenas de textos que escrevi, sem poupar adjetivos, sobre ela. Não posso dizer que Dalton se colocava no papel de mestre, mas eu me coloquei no de discípulo. E este meu romance ainda é um movimento do discípulo em direção à obra-fundadora – Beto, por exemplo, tem a sexualidade exacerbada própria dos personagens de Trevisan. Depois das agressões que recebi, eu me tornei mais exigente em relação a esta obra, perdendo um restinho de inocência. O fato é que o meu livro está pressuposto na ficção de Trevisan, é um subproduto dela, ele queira ou não.

Qual foi o motivo do fim de sua relação com o Dalton Trevisan?

O motivo, que nunca me foi comunicado diretamente, passa por uma reportagem que um jornalista de fora fez sobre o Dalton, acho que em 2001, talvez em 2000, e que revelava os hábitos do autor. Eu não estava em Curitiba, tinha ido ver minha família em Peabiru, mas recebi um telefonema do jornalista e disse que não podia falar sobre a vida, mas estava disposto a falar sobre a obra, e até antecipei algumas coisas. A matéria saiu, eu nunca a vi, e o Dalton me culpou, segundo soube. Depois de ter publicado a revista Joaquim, de ter digitado e impresso alguns folhetos de contos para ele, de ter sido um amigo dedicado, eu me senti decepcionado com a ferocidade de sua reação. Foi neste clima que escrevi Chá das Cinco com o Vampiro. Nesta época também eu já tinha começado minha trajetória de ficcionista. Não era mais apenas o crítico literário, a ferramenta útil para o contista. Um detalhe. Embora publicando meus livros na mesma editora de Dalton, não pedi nunca que ele me apresentasse, nem contava com isso. Sempre fui orgulhoso demais para pedir coisas. Mandei meus livros pelo correio para algumas editoras e ele acabou caindo nas graças da Luciana Villas-Boas, que escreveu aquele belíssimo texto da orelha. Aliás, devo muito às mulheres. Elas sempre confiaram em mim. Foi a partir da Luciana que minha trajetória de escritor ganhou projeção nacional. E agora quem me convidou para publicar este romance foi a Isa Pessoa. Que assim continue sendo.

É uma pergunta maldosa, mas não dá para não fazer. Co­­nhe­cidos de Dalton Trevisan dizem que ele, mesmo com o manuscrito nas mãos, não terminou de ler Chá das Cinco com o Vampiro. Essa (suposta) indiferença te in­­comoda?

Talvez ele esteja sofrendo de déficit de atenção e já não possa se concentrar muito tempo em nada. Nem mesmo na escrita. Veja os contos dele, cada vez mais curtos, cada vez mais repetitivos. Tem horas em que me pergunto se ele está consciente de que já escreveu a mesma coisa várias vezes. Assim, o que eu estranharia era ele ter conseguido ler um livro de quase 300 páginas, e que trata de um assunto tão distante dele.

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