Li numa coluna social: Clarice Lispector anuncia que desistiu da literatura. Aos 25 anos de idade, e leitor obsessivo de Clarice, logo entendi que ali havia uma entrevista. Foi uma negociação penosa. Nem o status de repórter do Segundo Caderno, de O Globo, me servia de credencial. Clarice resistia mas fui tão insistente que, um dia, ela me disse que sim.
Assim que entrei, uma mulher esguia, dissolvida na fumaça do cigarro, me conduziu a um sofá. Era Clarice. Usava um turbante de seda, à moda de Simone de Beauvoir, tinha gestos largos de atriz e reclamou: "Eu dei ordem para ninguém subir". Examinou-me em silêncio, com a perícia de um detetive. Depois, contrariando suas próprias palavras, perguntou: "O que você quer saber?"
Busquei meu pequeno gravador de repórter e o larguei como uma credencial, que enfim me identificava na mesa de centro. Procurava pela fita cassete quando Clarice, se erguendo, começou a gritar. "Ah! Ah! Ah!". Eram vagidos longos e sem sentido, pontuados por uma palavra que também se repetia: "Não! Não!". Com os braços esticados, ela agitava as mãos como se espantasse um morcego, ou um espírito.
Seu pavor não correspondia a nada. Primeiro, pensei que uma dor súbita uma cólica, um infarto a devastasse, mas ela conservava a postura reta e tinha os olhos bem vivos. Pensei, então, em algum vulto que se esgueirasse pelas paredes, um rato, ou mesmo um ladrão mas como entrariam naquele apartamento do sétimo andar?
As palavras como sempre me fugiam. Precisava dizer alguma coisa mas o quê? Até que, surgindo do corredor, uma mulher alta e forte, que mais tarde eu soube que era Olga Borelli, entrou na sala e a agarrou pelas costas. Um abraço que era uma camisa de força. Clarice tremia.
"Ah!, Ah!" ainda gritava, mas agora, com a mão direita, apontava para meu gravador. Aos poucos a amiga afrouxou o abraço e Clarice, em passos miúdos, se aproximou da mesa. Com a ponta dos dedos, pegou meu miserável gravador, como se ele fosse (eu tinha acabado de reler A Paixão Segundo G. H.) uma barata morta. E desapareceu.
Só me restava esperar. Eu precisava de uma resposta, qualquer uma. Até que, muito calma, Clarice ressurgiu e anunciou: "Agora podemos começar". Na mão, trazia uma chave, que exibia como um troféu. "Aquilo ficou trancado em meu armário", disse. "No fim de nossa conversa, eu devolvo."
Fizemos nossa entrevista. Eu gaguejava, ela respondia com frases ásperas. "Por que você escreve?", lhe perguntei. E ela: "Por que você bebe água?" Meu script de repórter fracassava. Minhas perguntas a afastavam. Era melhor descartá-las e enfrentar a mulher que tinha à minha frente. Só assim, como duas pessoas que encaram o presente, conseguimos conversar.
Ao fim da entrevista, ela me devolveu o gravador. Serena, perguntou: "Você gosta de bolo de chocolate?" Não gosto de bolo de chocolate, mas disse que sim. Levou-me à cozinha, onde me serviu uma farta fatia de bolo, que comi por desespero. Bebemos muitos copos de Coca-Cola. Só então me acalmei.
Falou de sua solidão, da dor de existir que não a abandonava e de seu desprezo pela fama de escritora. Longos silêncios me levavam a ouvir os latidos distantes de um cão. "Amo os cachorros, porque eles não mentem", me disse. Quando me despedi, me pediu: "Volte para me visitar, mas nunca mais traga isso".
Algumas semanas depois, movido pela vaidade, mas também pelo medo, arrisquei um telefonema. "Venha, estou esperando. A que horas você chega?" Foram meia-dúzia de visitas. Clarice me levava sempre para a cozinha e servia o mesmo bolo com a mesma Coca-Cola. Entendi que a repetição a tranquilizava. O bolo e o refrigerante se assemelhavam aos cachorros: nunca lhe falhavam. "Cachorrrrros são incapazes de dizer não", ela comentou, com seu excesso de erres, que lhe acentuavam a angústia.
Queria saber de mim, mas o que eu tinha a dizer? Falava de meus pais, de minhas paixões literárias, de minhas caminhadas pela praia. "Você deve saber que isso é meditação", explicou. "Eu também busco maneiras de meditar, mas nunca encontro". A aflição era, de fato, a marca de Clarice. Não conseguia se resignar com o presente: o minuto seguinte sempre a inquietava.
Deteve-se, um dia, diante de seu retrato pintado pelo italiano De Chirico, que tinha na sala. "Já fui uma mulher bonita. Hoje me limito a ser", me disse, se as palavras não se deformam em minha lembrança. Na última vez em que a vi, na Avenida Copacabana, de relance, estava postada, sozinha, diante de uma vitrine vazia, ocupada por manequins despidos. Fitava o grande nada que, afinal, regula suas narrativas.
Ainda tentei me despedir, indo a seu velório, no cemitério do Caju. Assustei-me ao descobrir que os judeus não abrem os caixões, pois os mortos não devem ser vistos. Depois, pensando melhor, achei que aquilo combinava com uma escritora, já que a última imagem que dela guardo não foi a que vi, mas a que imaginei.
Na verdade, até hoje, quando rememoro meus encontros com Clarice, tenho a sensação incômoda de que eu os inventei. Sinto-me obrigado, então, a reconhecer que, no fim, a literatura sempre derrota a vida. É verdade que Clarice pensava exatamente o contrário. Há uma frase que define isso. Disse Clarice um dia: "Quanto à literatura, mais vale um cachorro vivo".
* José Castello é autor de A Literatura na Poltrona, Inventário das Sombras (em que narra os encontros com Clarice Lispector e outros escritores) e do romance Fantasma, os três editados pela Record. Escreveu também a biografia Vinicius de Moraes O Poeta da Paixão, publicada pela Companhia das Letras.
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