Uma das cenas mais perturbadoras e revoltantes da última temporada de “Game of Thrones” envolveu Sansa Stark. Sob o incentivo de seu suposto protetor, Petyr “Mindinho” Baelish, ela se casou com Ramsay Bolton, para então descobrir em sua noite de núpcias que ele é um sádico sociopata. Ramsay a estuprou enquanto forçava outro homem a assistir. Então ele trancou Sansa em seu quarto, abusando dela sempre que tinha vontade.
Não foi a primeira vez que um ponto da trama de “Game of Thrones” levou os espectadores ao Twitter clamando para que os usuários publicamente renegassem o seriado, mas o que mais atraiu atenção foi o boicote de “alto padrão”. Entre outros, a senadora Claire McCaskill, democrata de Missouri, expressou seu desgosto. Então o site de notícias de entretenimento “The Mary Sue” declarou que estava fora do negócio de fazer recapitulações de GoT. A mensagem foi essencialmente: sem mais publicidade gratuita para um seriado que se deleita com violência sexual.
Falando abertamente
Mas a maré mudou para Sansa (interpretada por Sophie Turner), e o episódio mais recente a encontrou fazendo algo subversivo para os padrões da cultura pop. Ela não apenas falou sobre seu abuso; ela forçou outro homem a falar sobre isso também. Com isso, ela se tornou parte de uma recente onda de mulheres – reais e ficcionais, de denunciadoras de Bill Cosby e Claire Underwood em “House of Cards” – que se recusaram a deixar que a vergonha as silenciasse.
Depois de escapar de Ramsay, Sansa concordou em encontrar Mindinho e descarregou sobre ele os detalhes de sua tortura: “Ele nunca machucou meu rosto... Mas o restante de mim? Ele fez o que bem quis com o restante de mim. Contanto que eu ainda lhe pudesse dar um herdeiro. O que você acha que ele fez?”
Mindinho tinha esperanças de que se tratasse de uma pergunta retórica.
“Não consigo começar a imaginar”, ele resistiu. Mas Sansa não estava satisfeita e perguntou novamente.
“Ele bateu em você”, Mindinho tentou adivinhar. Sansa confirmou que ele estava correto, então lhe pediu mais exemplos. Após alguns protestos insinceros, ele concordou: “Ele cortou você?” Sim, isso também.
Mindinho se desculpou abundantemente. O titereiro que habilidosamente orquestrou todo o caos que deu início ao sofrimento visto no seriado parecia atordoado; ele estava fora da sua substância de uma maneira que nunca tínhamos visto.
“As outras coisas que ele fez, não é suposto que senhoritas falem sobre essas coisas”, Sansa lhe disse. “Mas imagino que nos bordéis se fale delas o tempo inteiro. Ainda posso senti-las. Não quero dizer ‘no meu tenro coração, ainda me dói muito’. Ainda posso sentir o que ele fez no meu corpo, estando aqui parada, neste momento.”
Talvez ele estivesse atuando, mas Mindinho parecia tanto arrependido e quanto atordoado.
Reconhecendo o dano
A expressão era familiar. Era reminiscente da expressão no rosto de homens que foram recentemente levados por um truque a ler em voz alta tuítes asquerosos e ameaçadores dirigidos a mulheres repórteres esportivas.
“Então tenho de ler todos eles?”, um homem muito desconfortável com a situação perguntou à repórter Julie DiCaro.
“Acho que sim”, ela respondeu.
“Uhhh. Espero que você seja estuprada novamente”, ele disse, transparecendo dor.
Em ambos, “Game of Thrones” e a campanha de interesse público, homens foram forçados a confrontar e reconhecer o dano que havia sido infligido. Isso é poderoso – e é um fenômeno bastante recente. As falas de Sansa foram precisas. Por muito tempo, a abordagem era que “não é suposto que senhoritas falem sobre essas coisas.”
Mas elas estão começando a fazê-lo agora, e eis porque isso importa: estupro, abuso e agressões sexuais não são como outros crimes. Vítimas tendem a sentir uma imensa carga de vergonha, indo até o ponto de culparem a si mesmas pelo que aconteceu. (É claro, isso também pode ser um reflexo da reação social insensível de antes de tudo perguntar o que a vítima estava vestindo, bebendo ou fazendo no momento do crime.) Para algumas, a vergonha pode ser tão ruim quanto o abuso em si, se não pior.
Vindo a público
Brene Brown é uma pesquisadora que passou sua carreira estudando vergonha e vulnerabilidade. Em seu livro “A Coragem de Ser Imperfeito”, ela escreve que “a vergonha precisa de três coisas para sair de controle em nossas vidas: segredo, silêncio e julgamento. Quando algo vergonhoso acontece e nós o mantemos trancado, isso cresce e entra em putrefação. Isso nos consome.”
Não é fácil vir a público, mas vítimas estão fazendo isso cada vez mais. Cinquenta e oito mulheres até agora acusaram Bill Cosby de agressões sexuais, que ocorreram ao longo de um período de décadas; mulheres comediantes estão se unindo nas mídias sociais para expor predadores em seu ramo, e músicas estão começando a se abrir a respeito dos publicitários, produtores e líderes da indústria que as abusaram e assediaram sexualmente. Mas também há a inevitável reação em sentido contrário. Em todos esses casos, negadores tomaram o Twitter para silenciar as acusadoras, comparando-as à agora infame “Jackie” da refutada reportagem de denúncia da revista Rolling Stone.
Em um instante, um dos personagens mais violados da televisão finalmente tinha controle sobre sua vida.
Sansa Stark pode ser uma personagem fictícia, mas ela faz uma defesa persuasiva dos benefícios de se transmitir abuso na televisão. Em um instante, um dos personagens mais violados da televisão finalmente tinha controle sobre sua vida. Não apenas ela manteve sua compostura enquanto confrontava Mindinho, mas ela é a razão por que seu irmão está formando um exército para derrubar Ramsay e reivindicar seu lar em Winterfell. E sem Twitter no universo de “Game of Thrones”, ela pode até encontrar deleite em seu poder recém-descoberto por um tempo.
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