A adaptação da série de graphic novels Watchmen para o cinema, como já era de se esperar, gerou reações bastante divididas. Porém, se a crítica e bilheteria do filme ficaram aquém do esperado, o impacto do longa-metragem sobre as vendas da obra que o originou tem sido muito positivo, inclusive no Brasil. A editora Panini relançou uma versão definitiva de Watchmen contendo a obra completa, com capa dura, comentários, esboços, curiosidades e artes originais. A qualidade do material original, somada a um impecável trabalho gráfico, colocou o volume em várias listas de livros mais vendidos (categoria ficção) no Brasil, feito raro e impressionante para uma história em quadrinhos.
Mas o relançamento da obra e sua adaptação para o cinema apenas reafirmam a sua importância dentro do meio literário e ratifica a qualidade de Alan Moore como escritor.
É comum roteiristas, desenhistas e editores de histórias em quadrinhos concordarem que Moore é um revolucionário do meio. Suas obras têm enorme destaque, qualquer artista deseja atuar com ele e, quase sempre, seus trabalhos são recebidos com entusiasmo pelos críticos.
Autor de obras como V de Vingança, Lost Girls, Do Inferno, Batman: A Piada Mortal e A Liga Extraordinária, criador de personagens ímpares como Constantine (da série Hellblazer, adaptado para os cinemas no filme homônimo), Moore é um dos poucos escritores cujos trabalhos são aguardados ansiosamente por qualquer fã de quadrinhos. Porém, foi de um serviço pequeno, em que não podia utilizar os personagens que desejava, que surgiu aquela que seria considerada uma das mais relevantes obras de quadrinhos da história.
Novo universo
A princípio, Watchmen era para ser uma minissérie de 12 edições com os personagens da extinta Charlton Comics, que detinha os direitos de heróis pouco conhecidos no Brasil como Besouro Azul, Questão e Capitão Átomo. Na época, a Editora DC (casa do Super-Homem e Batman) havia adquirido os direitos de uso desses personagens e desejava inseri-los em seu universo, como de fato fizeram, e não permitiu que Moore utilizasse os heróis que tinha em mente.
Para conseguir escrever a história que havia planejado, o roteirista decidiu criar um novo universo, mesclando a personalidade e o visual dos personagens que desejava trabalhar. Como as criações iriam ser suas e desconhecidas do público, Moore ganhou a liberdade de decidir o destino deles como bem entendesse. E, desta forma, surgiu Watchmen, com argumento de Moore e excepcionais desenhos de Dave Gibbons.
Clima noir
A escolha do desenhista é um capítulo a parte nas produções de Moore. O britânico Dave Gibbons é um ilustrador de estilo acadêmico (realista), e suas criações se encaixaram perfeitamente às pretensões do enredo. Dono de um traço elegante, Gibbons já havia colaborado com projetos anteriores de Moore, e conseguiu retratar muito bem as idéias do autor. Seus quadros sequenciais não apenas tornam visível o andamento da história, como também não desvia dela a atenção do leitor. Além disso, a total simetria dos quadros nunca havia sido utilizada antes, o que oferece à narrativa um incrível clima noir. "Partilhamos das mesmas idéias quando o assunto é histórias em quadrinhos, e creio que obtivemos nossos melhores resultados quando trabalhamos em parceria", disse Gibbons ao site screenrant.com, durante a Comic Con (convenção de quadrinhos que acontece anualmente em San Diego) sobre sua parceria com Alan Moore.
Outro fator essencial em Watchmen, do ponto de vista artístico, são as cores. O colorista John Higgins foi convidado por Gibbons para imprimir aos desenhos a atmosfera pop dos anos 80, por meio de cores fortes e chapadas (quando não há variação de tons). O resultado é um belíssimo casamento entre enredo e imagens, fundamental para o sucesso de uma história em quadrinhos.
Tridimensionalidade
O lançamento da revista em 1985, nos Estados Unidos, e em 1986, no Brasil, foi um daqueles momentos em que é possível perceber uma mudança de postura no gênero. Watchmen fugia dos padrões estabelecidos na época. Utiliza personagens ambíguos, de caráter duvidoso, sombrios e, por muitas vezes, violentos. Ainda assim, são carismáticos e tão tridimensionais que chega a ser difícil definir, no modelo mais simples de quadrinhos, quem é herói ou vilão. Foi uma desconstrução do gênero, uma quebra de paradigmas em que os heróis deixavam de ser modelos perfeitos e passavam a ser melancólicos, depressivos e falhos.
A história, recheada de flashbacks, metáforas e metalinguagem, é uma verdadeira análise e reflexão sobre quadrinhos, política, ciências, preconceito, obsessão e medo. Narrada por diferentes pontos de vistas e de forma não-linear em um bem sucedido método de valorizar a existência dos heróis desde 1940 até a Guerra Fria, período em que se passa a trama.
Por muitas vezes, Watchmen foge dos protagonistas ao estabelecer um fundo geopolítico para o mundo. Moore interrompe a narrativa para mostrar o passado dos personagens, a reação da população com o surgimento dos "heróis" e as consequências de sua existência. Também é um estudo sobre valores e princípios, expondo até onde cada um é capaz de ir para defender seus ideais.
A trama, enriquecida com uma genuína preocupação com as razões psicológicas dos protagonistas, é um verdadeiro devaneio de ideias, com cada quadro oferecendo informações relevantes sobre a história, inclusive fichas médicas, recortes de jornais e livros relacionados aos personagens.
Tamanha ousadia e originalidade foi rapidamente reconhecida pela crítica. Além de ter ganhado praticamente todos os prêmios existentes para quadrinhos, Watchmen recebeu o Prêmio Hugo de ficção na categoria Outros Formatos e foi a única revista que entrou na lista dos 100 Grandes Livros da Língua Inglesa desde 1923, da prestigiada revista Time. Apesar de ter sido lançada há 23 anos, apenas em 2007 a coletânea das 12 edições vendeu mais de 100 mil cópias nos Estados Unidos, quantidade acima da média alcançada por lançamentos e que prova como ela continua atual.
Vale destacar que Watchmen não é uma leitura simples. Difere do conceito padrão de revista de heróis, já que valoriza mais os diálogos e comportamento do que a ação. É uma leitura que deve ser feita com calma e saboreada atentamente, para não perder os detalhes e inovações que a diferenciam até hoje do que surge no mercado de quadrinhos.
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Serviço
Watchmen Edição Definitiva. Editora Panini, 460 págs., R$ 120.
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