Donzela Furiosa- Muitas novelas wuxia têm como protagonistas mulheres guerreiras. Jovens e inquietas, elas costumam ser exímias espadachins. No wuxia, os personagens marciais femininos abrem espaço para as discussões de gênero| Foto:

É provável que você nunca tenha ouvido falar em wuxia, mas é quase certo que tomou contato com elementos do gênero, mesmo sem se dar conta. Os mais velhos, por exemplo, tiveram a oportunidade de ver filmes de kung-fu em cinemas como Scala e São João. Puderam, ainda, acompanhar o seriado televisivo Kung-Fu, que narrava as peripécias do monge shaolin Kwai Chang Caine (David Carradine) em sua jornada pelo Velho Oeste. Naquele tempo, as rádios tocavam Everybody Was Kung-Fu Fighting (1974), funk-disco de Carl Douglas, e as pessoas compravam guias do tipo Kung-Fu sem Mestre em bancas de revistas.

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Referências semelhantes, diretas ou fragmentárias, também aparecem em momentos mais recentes. Por exemplo, na estética marcial dos quadrinhos e dos filmes norte-americanos de ação, que pode ser sintetizada pela frase "I know kung-fu", dita por Neo em Matrix, de 1999. Elas também surgem nos jogos eletrônicos, em títulos antigos como Kung-Fu Master (1984) e Street Fighter (1987) e em peças recentes, como as da série Mortal Kombat (1992 – 2011).

Em tempos ainda mais próximos, essas referências estão no renascimento do cinema marcial chinês, em filmes como O Tigre e o Dragão (2000) e O Clã das Adagas Voadoras (2004), em animações como Mulan (1998) e Kung-Fu Panda (2008), assim como em pastiches como Kill Bill (2003).

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A principal referência wuxia em produtos culturais do Ocidente é o "herói oriental", associado a um enredo que envolve injustiça, honra pessoal e conflitos passíveis de solução a partir da astúcia ou do poder marcial. Seu arquétipo é Bruce Lee, personagem retratado em seu caráter wuxia por Caetano Veloso em Um Índio (1976): "Tranquilo e infalível/ Como Bruce Lee".

O perigo amarelo

A chegada dos heróis orientais à cultura pop do Ocidente, porém, não foi um processo "simples". Foi, sim, uma inflexão percebida principalmente após a Segunda Guerra Mundial, em movimentos como o dos beatniks, da Contracultura, da popularização do Zen, da Nova Era e da afirmação dos direitos civis nos Estados Unidos.

Até então – exceção feita a Charlie Chan, detetive criado em 1923 por Earl Biggers –, os chineses eram normalmente representados pelo Ocidente como fracos, perversos e dissimulados ou, simplesmente, como indivíduos a serem submetidos por uma civilização "superior". Provavelmente originária do século 19 – período em que a China foi impactada pelo contato com as potências militares do Ocidente –, essa representação influenciou até o debate legislativo brasileiro sobre a substituição da mão de obra escrava no país. Ainda que os primeiros chineses tenham chegado ao Brasil em 1808 (com a corte de dom João VI), eles não foram incluídos entre os imigrantes desejáveis para o país no período pós-Abolição.

Tais representações – somadas à elevação do Japão ao grupo das potências militares (em 1905, após a vitória sobre os russos em Port Arthur) – refluíram sobre as mídias, que produziram vilões "amarelos" como Fu Manchu, de Sax Rohmer, e Ming, o imperador do Planeta Mongo (nas Aventuras de Flash Gordon, de Alex Raymond). O caso de Fu Manchu – verdadeiro "anti-wuxia" – é emblemático. O personagem foi assim descrito em O Insidioso Dr. Fu Manchu, de 1913: "Imagine uma pessoa alta, esguia e felina, de ombros altos, com sobrancelhas como as de Shakespeare e rosto semelhante ao de Satã... um intelecto gigantesco, com acesso a todas as fontes da ciência passada e futura... imagine esse ser horrendo, e você terá uma imagem mental do Dr. Fu Manchu, o perigo amarelo encarnado em um homem".

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A configuração geopolítica mundial pós 1945 foi, provavelmente, um dos motivadores do acesso dos heróis wuxia à cultura de massa ocidental. Na galeria dos supervilões, Fu Manchu acabou substituído pelo Crânio Vermelho (Red Skull), o inimigo nazista (e depois, comunista) do Capitão América.

Sob medida

Uma das razões para o sucesso dos personagens wuxia na cultura pop é, talvez, seu caráter simbólico. Um herói wuxia "ocidental" típico, como Kwai Chang Caine, sobrepõe elementos poderosos: ele é jovem, forte e sedento de justiça; ao mesmo tempo, é sereno e sábio como só alguém muito velho pode ser.

Outra razão é, sem dúvida, o caráter "plástico" dos personagens: ainda que a maioria se situe em contextos chineses ou orientais, em um mundo marcado por diásporas eles podem semear justiça em qualquer lugar. Em O Vôo do Dragão (1972), por exemplo, Bruce Lee vai a Roma para auxiliar parentes assediados pela máfia; no final, dá uma surra em Chuck Norris em pleno Coliseu!

Tanto o caráter arquetípico quanto a plasticidade dos personagens, porém, são características literárias típicas do wuxia original. Decorrentes de um longo processo de gestação na própria China, no contexto de uma história de conflitos e de uma "indústria cultural" que abrangia literatura escrita, contação de histórias, teatro popular, ópera tradicional, circo e práticas marciais.

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