Semana passada tivemos o 15 de novembro, uma data a não ser celebrada por muitas razões. A primeira e óbvia: é o dia do golpe militar republicano perpetrado em 1889 que destruiu a experiência política da nossa Monarquia Parlamentar Constitucional, que, desde a Independência em 1822, foi se aprimorando e que poderia ser, hoje, uma forma e um sistema de governo com capacidade de preservar a ordem institucional e legal por meio de seus mecanismos que permitem debelar crises políticas com mais agilidade.
A derrubada da Monarquia Parlamentar Constitucional inaugurou a tradição autoritária do presidencialismo republicano, uma importação acrítica do modelo americano, e estabeleceu uma forma e um sistema de governo que foram sendo moldados para funcionar apenas para as elites políticas e econômicas que deles se beneficiavam, não para a sociedade que deveria representar. Desde o fim do século 19, e mais propriamente no século 20 a partir de 1930, os grupos que se sucederam no poder se negaram a ser a expressão política daquilo que temos de mais virtuoso.
Mas de nada adianta haver apenas homens virtuosos na política se o sistema existente premia os vícios. Se os incentivos formais (leis e normas) e informais (práticas) premiam a corrupção, a ética só será vencedora se eliminá-los ou modificá-los. A concentração de poder no Estado é um dos mais graves, porque é a origem de praticamente todos os problemas que enfrentamos, do controle da vida social à economia aos fracassados sistemas tributário, previdenciário e burocrático.
Enquanto sob a Monarquia havia uma distinção entre quem exercia a chefia de Estado e a de governo, e o poder político federal era compartilhado entre o Imperador, o Conselho de Ministros, a Câmara dos Deputados e a Câmara do Senado, cada qual servindo como contrapeso aos demais provocando um equilíbrio por concorrência, no presidencialismo, que reúne a chefia de Estado e de governo, há três esferas de poder: a presidência e as duas Casas do parlamento. No passado, se um poder tentasse invadir o poder do outro, havia mais instituições para preservar o equilíbrio estabelecido pela Constituição, incluindo o poder Moderador.
Outro grave problema formal é o nosso sistema eleitoral. Participei recentemente de uma palestra junto com o jornalista William Waack, que ressaltou algumas de suas fragilidades letais. A primeira é o choque entre a alta representatividade de fato do presidente da república, eleito por voto direto pela maioria dos eleitores (sistema majoritário), e a baixa representatividade do Congresso Nacional, cuja parcela significativa dos 513 deputados federais é eleita não por seus próprios votos, mas pelos votos da coligação (sistema proporcional em lista aberta).
A situação é tão absurda que nas eleições deste ano, apenas 27 deputados federais conseguiram se eleger com seus próprios votos (da direita, são exemplos Marcel van Hattem, Kim Kataguiri, Eduardo Bolsonaro). Por outro lado, 486 deputados federais eleitos não conseguiram sozinhos votos suficientes para estar na Câmara a partir de 2019.
Temos, então, de um lado, um presidente que, de fato, representa a maioria da sociedade e, de outro, um Congresso que representa minorias difusas e cujos eleitos, a depender de seu estado de origem, são beneficiados pelo sistema de votação que faz com que os votos que receberam tenham, proporcionalmente, mais importância do que os de colégios eleitorais maiores. Mesmo um senador eleito por voto majoritário, a depender de seu estado de origem, terá sido beneficiado pelo critério da proporcionalidade porque assumirá o mandato com menos votos do que seus colegas de lugares com maior número de eleitores. Um voto de um eleitor de Roraima, por exemplo, vale 13 vezes mais do que o voto de um eleitor de São Paulo.
A baixa representatividade, que é o corolário do atual sistema eleitoral, tem uma consequência negativa sobre a qual ninguém discute: aqueles que são eleitos com baixo número de votos não têm sobre si o mesmo grau de responsabilidade dos que são eleitos com muitos votos e têm contas a prestar a esse eleitorado. Um deputado federal eleito em razão de uma coligação se sentirá devedor do puxador de votos e do seu partido, não dos seus eleitores.
A ausência de vínculo entre o político e o eleitorado pode impedir a assunção de deveres e obrigações para com a sociedade. Se não existe tal ligação haverá pouco ou nenhum incentivo de ordem pessoal para que esse político se preocupe com as consequências de suas ações para a comunidade que deveria representar porque terá como foco agradar tão somente aqueles que o elegeram (o seu partido e a coligação).
Um político eleito que não se sente pressionado a prestar contas para seus eleitores vai conduzir o seu mandato de acordo com seus interesses e dos interesses de quem o elegeu. Convencer um político como esse a votar reforma da previdência e tributária, por exemplo, é muito mais difícil – e essa é uma das principais razões que explicam o balcão de negócios que se transformou o parlamento brasileiro e o arranjo perverso que foi batizado pelo cientista político Sérgio Abranches com o eufemismo de presidencialismo de coalizão.
Não se trata, obviamente, de regra absoluta: assim como pode haver (e há em profusão) político eleito com maioria dos votos que não dê a mínima para o sentido de dever e de responsabilidade, um outro eleito com votos de terceiros poderá exercer o seu mandato de maneira responsável e digna. O problema reside na esfera dos incentivos e de como estes afetam o sistema e a relação entre a política e a sociedade. É uma de suas consequências diretas o profundo descolamento entre os políticos e a realidade da vida diária.
No caso do sistema eleitoral, a única solução é a mudança para o voto distrital, que eu defendo, ou para o voto distrital misto. Qualquer uma dessas alternativas mudaria completamente os incentivos negativos hoje existentes, estabeleceria o vínculo hoje inexistente entre eleito e eleitor, pressionaria os eleitos a agir de forma mais responsável.
Seria ainda melhor se restaurássemos o parlamentarismo, modelo que mantém permanentemente uma espada afiada sobre o pescoço dos políticos: se criarem crises, serão destituídos e novas eleições serão convocadas. Não teriam, como hoje, a estabilidade de quatro anos protegidos por regras que tornam praticamente impossível o seu afastamento.
Um dos grandes desafios do governo de Jair Bolsonaro será lidar com um Congresso com baixa representatividade e um sistema formal que beneficia os piores políticos e as piores práticas, além de engessar a atuação dos melhores. Um dos grandes desafios dos melhores deputados e senadores que representam a direita será lidar com o sistema existente e com colegas que dele se beneficiam.
Uma das atitudes políticas mais importantes será eliminar os incentivos ruins por meio de reformas várias, incluindo alterações dos regimentos internos da Câmara e do Senado que permitem obstruir e até mesmo impedir votações que conduzirão a mudanças importantes. O que o Executivo e o Legislativo deverão fazer é, em suma, reduzir os seus próprios poderes para que o Estado por eles institucionalmente representados (incluindo o Judiciário) tenham uma capacidade menor de atrapalhar as nossas vidas.
Quando fazemos o levantamento daquilo que precisa ser feito com mais urgência percebemos que o caminho é os políticos removerem os obstáculos criados por seus antecessores. A ação política mais importante é fazer com que a política não seja um instrumento de maximização do Estado e de privilégios de seus beneficiários, e de minimização das liberdades dos indivíduos.
Que a equipe de governo de Bolsonaro e os parlamentares conservadores e liberais eleitos reformem para melhor o que puder ser reformado, que tirem o Estado nocivo das nossas vidas, que coloquem para funcionar com eficiência os instrumentos estatais necessários (como a segurança pública) e que jamais se esqueçam do vaticínio de Ronald Reagan, presidente conservador dos Estados Unidos entre 1981-1989: o governo é o problema, não a solução.