Fala-se muito, hoje em dia, de uma tal “masculinidade tóxica”. Como costuma acontecer quando se fala muito de alguma coisa, levantou-se já uma reação de quem não aguenta mais aquele papo repetitivo e simplesmente passa a negar que exista o objeto de tanta gastação de saliva. Mas ela existe, estranhamente, a tal “masculinidade tóxica”.
E o que é ela? Simples: é uma forma desordenada de viver o masculino. E existe um masculino – ao contrário dos delírios daqueles que negam a existência não apenas da natureza humana mas de sua conformação bipartite, com uma natureza masculina e uma feminina diferentes –, ao ponto de o grande Tom Jobim ter dito, referindo-se às mulheres, que elas seriam “outro bicho”. Homem é homem, mulher é mulher; saindo disso saiu-se da realidade. Mas existem inúmeras maneiras de viver a masculinidade, assim como existem inúmeras maneiras de viver a feminilidade. Para piorar um pouquinho a situação, sofremos todos – homens e mulheres – do que em teologia convencionou-se chamar “consequências do Pecado Original”. Creia-se ou não na literalidade deste pecado, com Eva dando a Adão uma fruta (que não é uma maçã, nem aliás entra sexo na história), é inegável que todo ser humano sofra das ditas consequências: é frequentemente mais fácil mentir que dizer a verdade, fazer a coisa errada que a certa; por mais que raciocinemos, é comum que sigamos antes os impulsos mais baixos do nosso corpo (comer mais um docinho, ir atrás de uma pessoa comprometida) que a razão, que fica lá, coitadinha, pedindo para ser ouvida enquanto enfiamos solenemente o pé na jaca.
O ser humano, em outras palavras, é um ser que faz o errado mesmo sabendo que aquilo é errado, que deixa de fazer o certo mesmo sabendo que está fazendo besteira. Não se trata apenas de ignorância; o Cardeal Newman (cuja canonização o Papa autorizou ontem) disse certa feita que estudar a moral faz apenas com que tenhamos mais consciência do horror dos nossos erros, sem que deixemos de cometê-los. E assim é por toda parte, com todo ser humano, homem ou mulher.
Mas homem e mulher erram de maneiras diferentes, assim como amam, acertam, cozinham, limpam a casa, trabalham, escrevem, cavalgam, desenham, dirigem ou (insira aqui qualquer atividade humana) de maneiras diferentes. “Mulher é outro bicho”. E, para elas, somos nós homens o “outro bicho”. O bicho homem, este estranho animal humano do sexo masculino, tende a projetar-se adiante, para cima e para fora. É uma característica do homem, que aliás vê-se refletida até mesmo na conformação física de nossos corpos. A genitália masculina projeta-se para fora do corpo, e quando fica animadinha para encomendar o herdeiro fá-lo (com trocadilho) de maneira ainda mais visível e altaneira. Já a feminina esconde-se, pudica e tímida, mas alarga-se, acolhedora, para a passagem do parceiro numa direção e do herdeiro na outra.
O problema, então, é quando a nossa masculinidade é vivida, como disse acima, de maneira desordenada. Como, contudo, somos desordenados de nascença, por conta das famosas consequências do Pecado Original, é este o padrão. A masculinidade, assim como a feminilidade, tende à desordem. Para que ela seja desordenada nada é preciso fazer; para ordená-la, temos uma trabalheira enorme, e, mais ainda, temos um serviço que não pode competir apenas ao homem que tenta ordenar a própria masculinidade ou à mulher que tenta ordenar a própria feminilidade. A sociedade como um todo deve colaborar para que isso aconteça e – os religiosos, acrescentamos – cada pessoa deve aceitar a graça que Deus dá para fazê-lo.
A masculinidade dita tóxica, portanto, é apenas a masculinidade que não foi ordenada. É a masculinidade, por assim dizer, em estado bruto. E bota bruto nisso! O homem, ao ver uma mulher bonita, sente-se atraído como um personagem de desenho animado que chega perto de um ímã gigante. É difícil não largar o que se estava fazendo para seguir aquele ser de perfeição quase divina. É por isso, cara leitora, que é tão comum que ao entrar uma mulher bonita no recinto o homem simplesmente perca o fio da meada do que estava falando. Mas conseguimos nos conter, graças a Deus. É o mínimo que precisamos fazer para conviver em sociedade, afinal, a não ser que sejamos déspotas orientais que de dentro de um carro com vidros escuros mandam os seguranças sequestrarem as mulheres que lhes interessam. Dizem que era isso que fazia o herdeiro de Saddam Hussein. Nós outros, todavia, que percebemos na mulher um ser humano dotado de uma dignidade superior à nossa, fazemos o possível e o impossível para respeitá-la.
Para que isto ocorra, contudo, é preciso que esta nossa masculinidade seja ordenada. Domada. Adestrada. Posta nos trilhos. Isso não acontece sem um grande esforço do homem e da própria sociedade. E tudo, diria Freud, tem a ver com a sexualidade. O masculino e o feminino são sexos, e é em função do sexo, ainda que mediado por outros atos, que o homem descarrega caminhões de cimento, mata dragões (literais ou literários), escreve colunas de jornal, adestra cachorros e troca lâmpadas. A ordenação do masculino, portanto, não se limita à ordenação do que é estritamente sexual no homem; ela forçosamente deve atingir toda ação do homem, toda forma de projeção do homem sobre o ambiente. Há momentos em que um charuto é apenas um charuto, segundo Freud, mas dificilmente haveria um momento em que o homem pudesse ser apenas um ser humano, sem que seu sexo faça parte do seu modo de agir e de viver. Seu sexo, não estritamente sua sexualidade, notem bem.
Ao longo dos séculos, desenvolveu-se um método social e pessoal de ordenação do masculino, especialmente da sexualidade masculina. Isto ocorreu especialmente a partir do momento em que a Igreja evangelizou o mundo então conhecido, levando a todos a noção da dignidade feminina (afinal, para a Igreja a Rainha dos Céus e da Terra é uma mulher, coisa inimaginável para um pagão romano, para quem a mulher era um objeto que podia ser comprado ou vendido, como o gado). Trata-se da ideia do cavalheirismo. O termo vem da classe dos cavaleiros, no Medievo, que se dedicavam ao ofício das armas. Basicamente, os antepassados sociais dos policiais e militares de hoje. Por que logo eles? Por que não começou esta ordenação por, digamos, os plantadores de soja? Basicamente porque o ofício das armas é um ofício que se coaduna enormemente com o modo de viver masculino. O mesmo barbudo vienense certamente reconheceria nas enormes lanças e espadas dos cavaleiros medievais, ou nos fuzis e cassetetes dos seus descendentes atuais, símbolos fálicos. A coisa vai tão longe que o termo latino para “bainha” (aquela espécie de “coldre” das espadas) é “vagina”.
Uma masculinidade desordenada e armada, com substitutos penianos perfurocortantes e montada a cavalo, é um péssimo negócio. Era necessário civilizar esse pessoal antes mesmo de qualquer outro. Daí o surgimento, ao longo dos séculos, de enorme cópia de métodos de sublimação sexual, de restrição da violência, de subordinação do homem forte à mulher fisicamente fraca. Só assim aquela masculinidade pujante toda poderia ter lugar numa sociedade civilizada. Só assim Sir Lancelot jamais faria o que fazia o filho de Saddam.
Burramente, todavia, o cavalheirismo foi jogado na lata do lixo pela geração dos baby boomers, os nascidos logo após a Segunda Guerra. Aqueles mesmos que formaram o movimento hippie, a rebelião de Maio de 68 na França e os movimentos terroristas de extrema-esquerda no Brasil e no mundo. Aquilo tudo, pensaram eles lá com seus botões, era apenas hipocrisia burguesa. Afinal, que cavalheiros seriam esses que volta e meia saíam dos trilhos, forçavam mulheres a ter relações sexuais, batiam nelas e nos mais fracos, etc.? Ora, respondo eu, são cavalheiros que descendem de Adão e Eva. São cavalheiros marcados pelas consequências do Pecado Original. São cavalheiros, em suma, que precisam fazer um esforço enorme para tentar alcançar um ideal que em última instância é inatingível em sua perfeição. O perfeito cavalheiro é coisa de lenda; este seria Sir Galahad, “sem medo e sem mácula”. O próprio Lancelot andou se engraçando com a mulher do chefe.
O que tínhamos, portanto, era uma sociedade que se colocava um ideal altíssimo e homens que tentavam, sem jamais obter sucesso pleno, alcançar aquele ideal. Ao tentar alcançá-lo, eles já ordenavam em enorme medida a própria masculinidade, mesmo sabendo ser impossível sua completa ordenação enquanto tivermos em nós mesmos as más tendências que os religiosos afirmamos advirem do pecado de Adão. Mas o estupro seria inimaginável (ainda que de vez em quando um bêbado o cometesse), e um estuprador jamais seria bem vindo no meio de pessoas decentes. O roubo, o furto, a mentira, a agressão sem razão, a covardia (de bater em mulheres ou em homens mais fracos): tudo isso seria o objeto do combate interno do homem. A cada dia, a cada momento, cada homem, sabedor de que deveria ser o mais perfeito cavalheiro que pudesse, lutava para sê-lo, lutava para não cometer aqueles atos que o rebaixariam.
Mas a geração dos baby boomers achou que aquilo era uma besteira, uma “hipocrisia”, sem perceber que, como bem disse La Rochefoucauld, “a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”. Em outras palavras, o hipócrita é aquele que pelo menos reconhece que a virtude é superior ao vício; tem vergonha de seu vício e por isso finge ser virtuoso. O hipócrita, evidentemente, não é um cavalheiro. Mas ele ainda é melhor que alguém que nem mesmo tente, alguém que ache bonito fazer o que um cavalheiro jamais faria, agir como um cavalheiro jamais agiria.
E foi-se o bebê fora com a água do banho. Ao livrar-se das ditas hipocrisias burguesas, os baby boomers livraram-se também do cavalheirismo, que aliás de burguês nada tinha. Pelo contrário, as “virtudes” burguesas pouco em comum têm com o cavalheirismo verdadeiro. O burguês trancava a mulher em casa para que ela ficasse lá passando paninhos; o cavalheiro libertava-a da prisão, ainda que para chegar a seu quarto fosse necessário escalar a torre por suas tranças ou matar um dragão.
O que sobrou das tristes aventuras da geração que tinha perto de 20 anos em 1968 foi uma sociedade desprovida da noção de cavalheirismo. As comunas hippies e “progressistas” dos anos 1970 fizeram experiências de todos os tipos, desde obrigar as mulheres a deitar-se com todos os homens a forçar todos – homens e mulheres – a manter relações ditas “abertas”, tudo com a intenção de livrar-se das amarras burguesas e construir um paraíso na terra. Tudo sem perceber que o que se amarrava ali era a desordem do homem, em benefício da mulher.
O que foi construído, assim, de paraíso não em nada. E isso por uma razão simples: fomos expulsos do Paraíso de verdade após o Pecado Original. No nosso estado atual, nascemos incapazes do Paraíso. O que se construiu, em última instância, foram inúmeros inferninhos e, como sempre ocorre, a corda arrebentou, e arrebentou com força, do lado mais fraco. Quem mais sofreu com as experiências sexuais daquela geração foram as mulheres, que, por natureza, amam e acolhem. Que, por natureza, têm uma forma diferente da masculina de viver a sexualidade, e viram-se forçadas a fingir que são homens e a viver e expressar sua sexualidade de um modo masculino.
E eis que neste momento elas descobriram, horresco referens, a tal masculinidade tóxica. Que, no fim das contas, nada mais é que a masculinidade “normal”, a masculinidade tal como ela sai da fábrica (que é um ventre de mulher), sem ser coibida, sem ser posta nos trilhos, sem ser ordenada pelo cavalheirismo. E tome denúncia, e tome combate à tal toxicidade do masculino. Sou a favor. É ótimo que se combata a desordem, é ótimo que se tente fazer com que o homem fique melhor. Mas como fazê-lo? Tendo jogado fora a receita, tendo jogado fora o modelo, o arquétipo, a ação social em prol da conformidade do masculino ao ideal cavalheiresco, não há como ordenar masculinidade alguma. O que se tenta fazer hoje em dia é simplesmente acusar este ou aquele comportamento desordenado (do pedreiro com suas cantadas grosseiras ao estuprador, passando pelo brigão e o bobalhão que empina a moto no meio do trânsito), sem que se tenha, no entanto, um meio de ordená-lo. O meio que se tinha foi negado, e tendo-se retirado a tampa do poço agora preocupam-se com aquele buraco enorme no meio do caminho.
O que fazer? É um bom começo que se traga à baila a tal masculinidade tóxica. É um bom começo que se acusem os comportamentos masculinos desordenados. Eles, contudo, persistirão para sempre se não houver um esforço social de ordenação (não de negação!) deles. O que se propõe agora, todavia, o que se vê anunciado como se fosse boa coisa, é a negação da masculinidade em bloco para tentar combater a masculinidade tóxica. É, mais uma vez, jogar o bebê fora com a água do banho. Daqui a pouco será preciso abrir uma creche nos esgotos. Nega-se a masculinidade toda e propõe-se homens afeminados, homens tímidos, homens incapazes de qualquer tipo de violência (mesmo a violência justa, mesmo a violência necessária). O que se propõe parece-se cada vez mais com os Elóis da Máquina do Tempo, de H. G. Wells, serezinhos etéreos e amorosos que o herói acaba descobrindo serem apenas o gado dos Morloques, seres de intensa “masculinidade tóxica” que vivem em subterrâneos.
Decididamente, não é por aí. Não é negando o masculino que se combate a toxicidade da masculinidade desordenada. Isso é tão absurdo quanto erguer barricadas nas ruas para combater os engarrafamentos. A masculinidade deve ser ordenada. A violência deve ser ordenada. A sexualidade projetante e penetrante do homem deve ser ordenada. Mas isso só pode ser feito quando se a reconhece, quando a masculinidade é percebida como um bem (e ela o é, assim como a feminilidade) e tratada, podada, cultivada na forma do cavalheirismo. Homens que parecem ursinhos de pelúcia não são nem podem ser a solução, mesmo porque mulher alguma consegue respeitá-los por muito tempo. O que acaba acontecendo é a negação consequencial da feminilidade das mulheres, que viram “o homem da casa”. Péssimo para os dois.
Chegou, então, a hora de tentar resgatar o que foi levianamente jogado fora duas ou três gerações atrás, e trabalhar por um novo cavalheirismo. Assim como os baby boomers pararam de usar chapéu, mas os rapazes hoje em dia, com seus bonés, voltaram a cobrir a cabeça como sempre se fez (tendo contudo perdido toda a etiqueta de quando se tira e põe o chapéu, etc.), temos que buscar resgatar e reescrever um cavalheirismo do século 21, um cavalheirismo que nos ajude a levantar a mulher do lodo em que ela foi jogada pelas péssimas experiências daquela geração, que nos ajude a ordenar o comportamento de homem e mulher. Um cavalheirismo que nem seja burguês, nem seja emasculador.
Afinal, a sociedade depende de que tanto a feminilidade quanto a masculinidade sejam ordenadas. Chega de masculinidade tóxica, pela sua ausência de ordenação ou pela sua ausência tout court; chega de feminilidade tóxica. Viva o respeito, que é bom e – dizem – conserva os dentes.
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