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Subsidiariedade

Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo (Foto: )

A proposta mais importante do novo governo é o que vem sendo chamado “descentralização”. Na Doutrina Social da Igreja (coisa boa de estudar, aliás – recomendo vivamente o único manual de DSI brasileiro, publicado pela editora Quadrante, que por acaso é da autoria deste pobre escriba), temos um nome mais complicado ainda: subsidiariedade.

A ideia da subsidiariedade é diametralmente oposta ao pensamento vigente na esquerda que vem sistematicamente destruindo o país desde a redemocratização. Para a esquerda, tudo vem do Estado central: mesmo as crianças pertenceriam ao Estado, que relutantemente permitiria que os pais cuidassem delas – depreende-se que apenas na infeliz ausência temporária de um vasto sistema de internatos estatais. Toda riqueza pertenceria ao Estado, que relutantemente deixaria que os estados e municípios usassem um pouco dela para fazer estritamente aquilo que o Estado central percebesse como necessário, e zelosamente vigiaria para que nenhum cidadão acumulasse dinheiro “demais” (houve mesmo propostas de lei visando confiscar todo valor acima de uma quantia arbitrária). Do mesmo modo, dirigir um carro depende de autorização estatal. Ser autorizado a comprar uma arma, então, é um dos processos burocráticos mais kafkianos da nossa grotesca e inchada burocracia. Levá-la legalmente consigo, só para os que fizerem genuflexões repetidas ao altar de César. E por aí vai. Tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado, como já declarara Mussolini.

Ironicamente, é Bolsonaro que foi delirantemente apodado de fascista pelos estatólatras. E é ele quem deseja instaurar o princípio da subsidiariedade na organização deste mesmo Estado. A subsidiariedade é a ideia segundo a qual a autoridade e o poder pertencem de direito sempre ao menor ator possível: a pessoa, a família, a comunidade paroquial imediata. Este poder é subsidiariamente cedido quando necessário, na medida estrita do necessário (nada de cheques em branco) e sempre temporariamente, à esfera imediatamente superior. Assim, a pessoa que precisa de ajuda para algo (por exemplo, a criança que precisa de educação) a busca por direito na própria família, cedendo a esta o poder estritamente necessário para tal fim. Se esta esfera não consegue suprir a necessidade, ela cede esse poder à próxima esfera, sempre subsidiariamente (ou seja, fazendo da próxima esfera uma como que filial sua). É por isso que se diz que a escola age in loco parentis, “no lugar dos pais”. O professor castiga ou avalia o aluno usando um poder que lhe foi dado pelos pais do estudante. Ele os está representando para o fim estrito de fazer algo que eles não são capazes de fazer (ensinar álgebra, por exemplo). Como esse poder é estritamente limitado em busca daquele fim determinado, o professor não pode, por exemplo, usar do tempo de aula para ensinar ao aluno uma doutrina que entre em conflito com a visão de mundo dos pais. Ele os representa, e não pode ir contra eles.

Vejam agora a diferença total, a inversão completa que é a visão de mundo da esquerda: no pensamento esquerdista, o aluno pertence ao Estado, que seria representado pelo professor. O poder viria de cima para baixo, não de baixo para cima. Assim, seria dever do professor desmanchar na cabeça plasmável do aluno as opiniões dos pais, quando elas estejam em conflito com a ortodoxia do Estado. Se eles acreditam que o mundo foi criado por Deus, por exemplo, competiria ao professor convencer o aluno de que seus pais estariam errados e seriam supersticiosos, incapazes de aceitar a verdade de uma evolução guiada pelo acaso em um mundo sem início, ou o que quer que fosse defendido oficial e dogmaticamente (quase que como uma religião) pelo Estado representado pelo professor.

O mesmo se dá em relação a qualquer outra esfera da vida social: segundo o princípio da subsidiariedade, compete à família conseguir um ganha-pão honesto para assegurar sua vida digna. Para o hipercentralismo da esquerda, ao contrário, “criar empregos” seria função do Estado. Pensando em termos de subsidiariedade, o melhor seria haver uma infinidade de pequenos comércios familiares, perfeitamente independentes e autônomos. Para o hipercentralizador esquerdista, ao contrário, na impossibilidade temporária de substituí-los todos por uma só organização gigantesca estatal, o ideal seria que eles diminuíssem em número e autonomia. Assim, ao longo das últimas décadas, vimos o poder do Estado sendo usado (ou melhor, abusado) para – por intermédio de exigências burocráticas insanas – forçar os pequenos estabelecimentos a fechar as portas e criar oligopólios ou monopólios umbilicalmente ligados ao Estado. Daí o surgimento de gigantescas redes de supermercados, daí a concentração dos bancos, que foram devorando-se uns aos outros até sobrar poucos etc.

Outro exemplo claro desta diferença polar que tento apontar aqui é o da previsão financeira de uma reserva para os tempos de vacas magras. Segundo o princípio da subsidiariedade, esta é uma obrigação de cada pessoa e família. Cada pessoa deve fazer sua própria reserva, guardar um dinheirinho, aplicá-lo como achar melhor, e assim garantir-se contra quaisquer imprevistos. Se por alguma razão a pessoa não conseguir (por exemplo, um acidente que a force a gastar mais do que previa), compete a seus familiares ajudá-lo. Se estes não o conseguirem, sobe-se subsidiariamente à próxima esfera. Já na hipercentralização esquerdista, o “correto” é algo como o FGTS, em que o dinheiro que o patrão desembolsa pelo trabalho do empregado é guardado num fundo com rendimentos inferiores até mesmo aos da caderneta de poupança (que já não rende praticamente nada!), e o pobre trabalhador não tem nem sequer acesso a este dinheiro (provavelmente para não gastar tudo em besteira, o tolinho), a não ser que incorra em uma das situações elencadas num rol de catástrofes pessoais estabelecido pelo Estado: a pessoa só tem acesso ao próprio dinheiro se tiver câncer, for comprar uma casa, for demitido, ou alguma outra situação prevista por burocratas sem face. O mesmo vale, com ainda mais força, para o 13.o salário: o Estado obriga o patrão a guardar todo mês uma parcela do que o trabalhador lhe custa, não deixando que este ponha as mãos em seu suado dinheirinho até o fim do ano, quando então recebe de uma vez aquilo que o patrão foi obrigado a reter (normalmente investindo e lucrando sobre o dinheiro que não lhe pertence, claro). Assim, prevê-se, o burrinho do trabalhador terá dinheiro para comprar presentes de Natal. Veja-se como toda a arquitetura desta farsa parte do princípio de que o poder vem do centro: é o Estado que manda que o patrão retenha o dinheiro (no caso do 13.o), ou é o próprio Estado que o segura em suas mãozinhas suarentas, pingando para o trabalhador apenas quanto e quando o Estado ache bom ou necessário. O pagamento do trabalho não pertence a quem trabalhou, segundo esta visão, e sim ao Estado; o patrão age como preposto do Estado ao reter ao longo do ano o que comporá o 13.o, e a reserva para emergências do trabalhador é gerenciada num conluio entre patrão e Estado no caso do FGTS.

Pois é uma visão baseada na subsidiariedade que o novo governo anuncia que passará a vigorar. A Previdência passará a ser composta de fundos individuais para a aposentadoria, não mais de um gigantesco caixa comum – na verdade, um esquema de pirâmide – sujeito a desvios e descaminhos de toda ordem. A decisão de armar-se ou não para defesa própria passará ao cidadão, cessando o poder arbitrário dos delegados de Polícia Federal de aceitar ou não a declaração de “necessidade” de ter uma arma dada pelo cidadão – o que já é absurdo, aliás; afinal, o que é efetivamente necessário além do ar que se respira? Mesmo o feijão com arroz pode ser substituído por alguma outra coisa. Necessidade é algo quase completamente subjetivo, e não há razão alguma para se limitar o poder de compra de uma pessoa àquilo que lhe seja “necessário” (ou, pior ainda, definido como tal por um burocrata que não tem conhecimento algum da realidade em que vive a pessoa!).

Do mesmo modo, o protagonismo político das instâncias mais baixas deve ser reforçado, devolvendo-se a elas os poderes que lhes pertencem e que foram usurpados pelo Estado hipercentralizador da esquerda. Os municípios devem deixar de ser mendigos de migalhas federais. As unidades da Federação passarão a poder governar-se com autonomia muito maior. Os pais de alunos devem passar a ter voz no governo das escolas. E por aí vai.

Para a esquerda, isso é simplesmente o caos. Eles não conseguem perceber que a ordem real não é o delírio megalomaníaco segundo o qual burocratas em Brasília saberiam melhor que cada pessoa, família, bairro ou município o que lhe é mais adequado. Há muito mais ordem num bosque natural, em que árvores dão sombra a arbustos e miríades de insetos polinizam e alimentam pássaros, que em uma praça monumental de cimento nu, sem uma sombra, tal como as concebidas pelo famoso arquiteto comunista Oscar Niemeyer. É esta ordem complexa, em que cada um pertence de maneiras ricas e diversas de complexíssimos ecossistemas interligados, que gera riqueza social. Esta ordem é uma ordem baseada no princípio da subsidiariedade. A proposta do novo governo é justamente ajudar na recriação da ordem social, basicamente retirando-se aos poucos e deixando que a sociedade civil ocupe os espaços que lhe foram negados e reassuma os poderes que lhe foram usurpados. Assim, em alguns anos, há de cessar a situação de calamidade pública que vigora na segurança e na economia. Assim, aos poucos, flores surgirão. Assim, a cada dia, os cidadãos poderemos respirar aliviados por sermos percebidos como as pessoas que somos, cada qual com sua complexíssima teia de relações sociais formais e informais, em vez de nos resumirmos ao número do CPF.

A hipercentralização destruiu a sociedade brasileira e a trouxe à presente situação de anomia. O respeito sistemático ao princípio da subsidiariedade é a única maneira de recuperar a ordem perdida, e é esta a proposta do novo governo.

Pela primeira vez em muitos anos, torna-se possível termos esperança. Dias melhores virão.

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