Após doze anos, um presidente sul-coreano visitou Pyongyang, a capital da Coreia do Norte, em mais um capítulo nas relações entre as duas repúblicas da Península Coreana. Moon Jae-in foi recebido pelo ditador Kim Jong-un na manhã de terça-feira, no aeroporto internacional da capital. Kim estava acompanhado da esposa, Ri Sol-ju, e de grande comitê de recepção, com a guarda de honra do país, bailarinos com buquês de flores e uma miríade de bandeiras da república do norte e da península unificada.
Moon, além de desembarcar também acompanhado de sua esposa, Kim Jung-sook, levou consigo uma delegação composta por entre 100 e 150 e cinquenta pessoas: desde esportistas para atividades de relações públicas até alguns dos principais políticos e empresários do sul, como o herdeiro da Samsung e o presidente da LG. O tamanho e a composição da delegação mostra que os propósitos da estadia de três dias eran mais amplo do que produzir notas protocolares para a imprensa. Moon já deixou claro que é ambicioso sobre a relação entre a Coreia do Sul e a Coreia do Norte e esse encontro apenas comprova isso.
Relação morna
Desde o encontro entre Kim e Donald Trump em Cingapura, em 12 de junho, a relação entre a Coreia do Norte e os EUA esfriaram. A retórica continuou, na maioria das vezes, amistosa, com tuítes entusiasmados de Trump e declarações de confiança da parte de Kim. No fim de agosto, entretanto, Trump, alegando que as negociações estavam estagnadas, cancelou a ida de Mike Pompeo, seu Secretário de Estado, à Coreia do Norte. O governo de Pyongyang respondeu com uma carta, quatro dias depois, em que supostamente afirmou que a relação entre os dois estavam “novamente em risco”.
Antes disso, em meados de julho, após visita de Pompeo, a chancelaria da Coreia do Norte declarou estar “’desapontada” com o encontro, ao ponto de chamar a oferta dos EUA de “mafiosa”. Kim não recebeu o diplomata dos EUA, pois estava em uma fazenda de batatas no condado de Samjiyon. As fotos do ditador sorridente em trajes leves viralizaram, em um tom de desdém ao visitante. Pompeo teria voltado pra casa com mais uma carta em mãos e também aproveitou sua visita ao Vietnã para tratar do tema com outros atores regionais.
A principal questão entre Washington e Pyongyang é que ambos os governos estão esperando o outro mostrar suas cartas primeiro; ou ver quem pisca primeiro, quem tira a mão do fogo, qualquer analogia que ilustre a situação. A Casa Branca quer que a Coreia do Norte entregue um inventário completo de seu programa nuclear e de mísseis, e inicie o desmantelamento antes de fazer qualquer concessão.
A Coreia do Norte, por sua vez, diz que iniciará esse processo apenas após alguma concessão que mostre que os EUA não irão atacar o país ou tentar derrubar o regime. Especialmente, um acordo que encerre oficialmente o conflito coreano, congelado por um armistício desde 1953. Tal acordo necessita das assinaturas de China e dos EUA para vigorar, como potências signatárias do acordo original. É essa espera que contribuiu para o esfriar da relação e a diminuição do assunto no noticiário, embora Kim e Moon tenham mantido contato no período.
A declaração conjunta entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul
O principal produto da cúpula foi a Declaração Conjunta de Pyongyang, assinada por ambos os líderes em 19 de setembro. Em sua introdução, afirma que “os dois líderes discutiram o excelente progresso feito desde a adoção da histórica Declaração de Panmunjom, realizada em abril e que rendeu as imagens de ambos os líderes atravessando juntos, de mãos dadas, a linha que separa as duas repúblicas. O preâmbulo também fala em conversas “francas” e no melhor convívio entre os dois países.
A declaração é composta de seis artigos, cada um com eventuais parágrafos adicionais. O primeiro estipula maior cooperação militar para prevenção de incidentes na fronteira eufemisticamente chamada de Zona Desmilitarizada. O eufemismo se dá pelo fato de que, embora forças militares não possam estar na faixa de quatro quilômetros de largura, ela é cercada de tropas e extremamente minada. O artigo também determina a criação imediata de um comitê militar conjunto, diminuição de postos na fronteira e monitoramento de voos.
O segundo artigo versa sobre uma maior cooperação econômica: a abertura, até o final de 2018, de dois corredores terrestres, com ferrovias e rodovias, na costa leste e na costa oeste da península, ligando os dois países; a retomada do complexo industrial fronteiriço de Kaesong, que une empresas do sul e trabalhadores do norte; a criação de zonas especiais econômicas e turísticas; finalmente, cooperação em temas ambientais e de saúde pública, como controle de epidemias.
O terceiro artigo aborda questões humanitárias e reuniões familiares de pessoas separadas pela guerra, incluindo uma inédita instalação permanente para esse tipo de encontro, algo sem dúvida de grande impacto na sociedade e nas relações públicas. Em quarto, iniciativas para “reconciliação e unidade” para demonstrar o “espírito da nação coreana”, como cooperação esportiva e cultural.
O quinto artigo é, em uma perspectiva realista e pragmática, o mais interessante e que despertou mais atenção.
O texto diz que “ambos os lados” comungam da visão de que a Península Coreana precisa se transformar em uma “terra de paz, livre de armas nucleares e ameaças nucleares”, e que progresso substancial deve ser feito nessa direção. Ou seja, uma referência à política norte-coreana de que o país não admite abrir mão de suas armas nucleares sem garantias dos EUA, o que inclui a retirada das armas nucleares do país que estão no território aliado da Coreia do Sul.
Além disso, o artigo afirma que o Norte irá desmontar de forma “permanente” o local de teste de motores de mísseis em Dongchang-ri, “sob observação de especialistas de países relevantes” – diferente do desmonte anterior realizado pelos norte-coreanos, em Sohae, que não contou com observadores internacionais. O artigo também afirma que o Norte está “disposto” a adotar outras medidas, como o desmonte das instalações nucleares em Yongbyon. O sexto e último artigo fala de uma visita de Kim a capital do sul, Seul.
Esporte
O quarto artigo, que trata de questões de reconciliação, aborda pontos esportivos. Embora não sejam a prioridade de intérpretes Realistas (no caso, uma escola de pensamento, não um qualificador) das relações internacionais, tais decisões podem ter um impacto importante. A relação entre esporte e política internacional não é nova, nasce de forma simultânea às olimpíadas modernas, ainda no século 19. No caso coreano, a importância é considerável pois trata-se de curar feridas entre um mesmo povo.
O texto fala da visita de uma trupe artística do norte ao sul, de participação conjunta na Olimpíada de Verão em 2020 e de uma proposta conjunta para receber os jogos olímpicos de verão em 2032. Algumas experiências do tipo já foram realizadas recentemente, como a equipe conjunta de hóquei no gelo feminino na última Olimpíada de Inverno, e quando as duas equipes coreanas de tênis de mesa deveriam se enfrentar nas quartas-de-final do campeonato mundial.
Deveriam, mas não se enfrentaram; decidiram seguir adiante como uma equipe unificada. As atletas falam o mesmo idioma, possuem uma ancestralidade comum. A cooperação esportiva é uma maneira eficaz de mostrar ao público que as duas sociedades podem cooperar, lembrá-las de que são a mesma comunidade, apenas separadas por um conflito de décadas atrás. Não se trata de mero otimismo ou simbolismo, mas de mais um sinal do verdadeiro propósito dessas conversas: uma eventual reunificação coreana.
Futuro e ceticismo
As concessões da Coreia do Norte devem ser recebidas com ceticismo, por dois motivos. Primeiro, na coletiva de imprensa que apresentou o documento, Moon entregou a “pegadinha”: que a oferta norte-coreana estava condicionada à exigência de que os Estados Unidos tomem “medidas correspondentes”. Não foram especificadas quais seriam, embora, repita-se, os dois objetivos norte-coreanos sejam o reconhecimento oficial e a retirada das armas nucleares da península coreana. Ou seja, de certo modo, o impasse continua, apenas com uma oferta melhor discriminada.
O segundo motivo é: as instalações oferecidas não seriam mais de tanto valor para os norte-coreanos. Já teriam obtido o que poderiam delas e podem continuar com seus armamentos em outras instalações. Claro, qualquer afirmativa nesse sentido é especulação, apenas um punhado de oficiais de inteligência sabem dados concretos sobre essa hipótese. De qualquer maneira, é sempre importante controlar o otimismo, como dito nesse mesmo espaço em situações anteriores sobre o mesmo tema.
O que pode acontecer num futuro próximo é uma melhoria das conversas entre Kim e Trump, talvez com a mediação de Moon. O presidente sul-coreano, inclusive, não deixou de elogiar e fazer garantias em relação ao seu principal aliado. Kim também dirigiu palavras amistosas ao presidente dos EUA, pois agora está em situação confortável, com pressão mínima em cima de seu governo. As sanções contra a Coreia do Norte serão tema da próxima reunião do Conselho de Segurança da ONU, e a Rússia já defende seu abrandamento. Ainda no âmbito da ONU, teremos nas próximas semanas a abertura da 73ª sessão da Assembleia Geral, em Nova Iorque; não se deve descartar uma visita de Kim aos EUA, embora improvável.
Além dessa melhoria, uma visita de Kim à Coreia do Sul também seria importante. Nunca um líder norte-coreano visitou Seul desde a divisão da península. Além desse simbolismo e de mais conversas no mais alto nível governamental, proporcionando um rápido avanço das relações, a visita serviria de termômetro da opinião popular. A delegação olímpica norte-coreana foi recebida com alguns protestos. Como seria a recepção de Kim no sul? O que a sociedade do sul vai achar dessas conversas? Ao contrário do norte, um regime autoritário unipartidário e hereditário, o sul precisa prestar contas aos seus eleitores.
Protagonismo
O principal aspecto dessa visita é a noção explícita de protagonismo coreano nas conversas sobre o futuro da península. Algo também comentado nesse espaço e que gerou algumas reações apaixonadas, em defesa ideológica do papel de Donald Trump nessas conversas. Repete-se: tanto EUA quanto China têm peso no que está acontecendo, isso é inegável. O que não se pode fazer é tratar as repúblicas coreanas como fantoches dos seus aliados mais poderosos.
Isso podia ser verdade até meados da década de 1990, talvez até mesmo o início do século. Hoje, entretanto, a situação é diferente. O norte possui um poder de barganha muito maior, com as fichas de seu programa nuclear e de seus mísseis balísticos capazes de atingir o continente americano. O sul é uma potência regional com alcance mundial em aspectos econômicos e culturais, com empresas e artistas de relevância global.
Ambos os países querem tomar as rédeas de seu futuro e do destino da península. Isso inclui uma reunificação com potencial de criar uma potência que rivaliza com seus vizinhos. No preâmbulo da declaração assinada, os líderes falam que “reafirmaram o princípio de independência e autodeterminação da nação coreana”. No singular. Apenas uma nação, controlando seu rumo.
Moon não tem apenas motivos pessoais para essa reaproximação, mas também pragmáticos, vide o tamanho de sua delegação. O Norte representa vastas oportunidades de negócios para as empresas do Sul. O recado fica ainda mais claro nos últimos passos da viagem. Na quinta-feira, Moon e Kim, acompanhados de suas esposas, visitaram o monte Baekdu, na fronteira do norte com a China.
O monte é um vulcão ativo de cerca de 2.700 metros de altitude cujo nome significa “montanha do cume branco”, dada a presença de neve. Um dos mais violentos fenômenos da natureza conhecidos pelo homem foi ali, mais de 1.000 anos atrás. A silhueta do vulcão, cuja última erupção foi em 1903, está no brasão do governo do norte. Sua caldeira é conhecida como Lago Celestial e, em sua encosta, uma queda de água termal que nunca congela.
A nomenclatura e a simbologia do lugar já entrega sua importância. Ele é considerado sagrado para todos os coreanos, local de nascimento de Danung, o lendário fundador da primeira dinastia coreana, Gojoseon, 45 séculos atrás. É tradicional que coreanos façam peregrinações para a montanha; os sul-coreanos, proibidos de entrar na Coreia do Norte, sobem ao cume pelo lado chinês.
Moon e seus acompanhantes tornam-se, então, os primeiros sul-coreanos que sobem essa montanha sagrado pelo lado norte-coreano. O presidente sul-coreano encheu duas garrafas com água do Lago Celestial. Fotos e declarações foram dadas pelos dois líderes, de mãos dadas, no topo do vulcão. Toda essa simbologia pode parecer tola para o observador externo, mas certamente terá forte repercussão na nação coreana, pois uma reunificação e reconciliação passa por essa montanha sagrada.