Peço desculpas aos meus leitores dessa coluna e aos leitores da Gazeta do Povo pelo atraso na publicação, normalmente realizada às terças e sextas-feiras
O caso do jornalista saudita Jamal Khashoggi é mais que um assassinato político, é uma queda de braço internacional. O jornalista que era a principal voz de oposição ao regime absolutista dos sauditas foi assassinado no dia 2 de outubro, no consulado saudita em Istambul. Desde o início, o governo turco de Recep Erdoğan, cada vez mais autoritário e dedicado em consolidar sua posição de potência regional, exerceu pressão sobre as autoridades sauditas. Some-se a isso o fato de Khashoggi ser residente nos EUA, trabalhar para um veículo de imprensa do país e seus filhos serem cidadãos dos EUA, o principal aliado da monarquia saudita.
Um suposto reformador
As particularidades totalitárias do regime saudita já foram expostas aqui nessa coluna anteriormente. Oficialmente, a CIA, agência de inteligência dos EUA, divulgou, no dia 16 de Novembro, que Mohammed Bin Salman, o príncipe herdeiro saudita conhecido pela sigla MBS, pessoalmente ordenou o assassinato de Khashoggi. Saindo dos registros oficiais, isso era quase garantido. Se uma pessoa tentar comercializar uma garrafa de bebida alcoólica no reino dos Saud, as autoridades provavelmente saberão, tamanho o aparato de vigilância e de repressão. Nunca existiu a possibilidade de uma equipe de quinze membros de forças especiais sauditas agirem fora do país sem a bênção de MBS.
O príncipe MBS é, ou melhor, era, visto como um reformador, um líder jovem antenado com o Ocidente e com uma eventual abertura do país. Ambiciosos planos econômicos para diminuir a dependência do petróleo e a abertura cultural, como a abertura de cinemas após quarenta anos, eram alguns desses sinais. Simultaneamente, desde o início, MBS também é adepto da linha-dura e de medidas agressivas para garantir tanto os seus interesses quanto os que ele julga serem os interesses do reino.
Internamente, coordenou expurgos contra figuras proeminentes do reino, sob a justificativa de combate à corrupção; algo difícil de crer em um país em que não existe sequer judiciário independente. Externamente, seu rosto tornou-se conhecido do público internacional desde janeiro de 2015, quando assumiu o cargo de Ministro da Defesa. Pouco depois, coordenou a coalizão que age na guerra civil do Iêmen, apoiando a facção sunita contra os houthis xiitas, apoiados pelo Irã. Além de bombardeios e presença de tropas, o reino saudita bloqueia o Iêmen. As consequências são mais de três milhões de deslocados, cerca de cem mil civis mortos e dezenas de milhares de crianças mortas de fome ou pelo cólera.
Embora MBS tenha realizado uma verdadeira turnê mundial de relações públicas, recebido por Trump, tirando selfies com Macron, dentre outras cenas curiosas, a máscara de jovem reformador nunca foi totalmente aceita em muitos setores e por muitos analistas. Sua agenda regional não tem nenhuma novidade. Uma liderança autoritária que busca impor os interesses que defende mesmo que seja pela força, e impedir qualquer ameaça a um predomínio saudita tanto no mundo árabe, como o país árabe mais rico, tanto no mundo muçulmano, como guardião das cidades sagradas e da mesquita de Meca.
Essa máscara, progressivamente, está caindo. A euforia de investidores internacionais ou de lideranças progressistas passou. Os pilares sauditas continuam os mesmos: religião, petróleo e poderio bélico. O último caso deve ser frisado, já que os sauditas são dos maiores compradores de armas do mundo, possuem mísseis balísticos de origem chinesa e programas de armas de destruição em massa. Sendo assim, sussurros em corredores palacianos sauditas já falam na necessidade de um caminho realmente reformador, ou, então, de uma liderança menos impulsiva, mais madura, já que o temperamento de MBS é muitas vezes colocado, de forma superficial e condescendente, na conta de sua idade, 33 anos.
Sucessão saudita
A ascensão meteórica de MBS contou com uma mudança legal. O atual rei saudita, Salman, é, como todos seus irmãos antecessores, filho do fundador do reino, Abdulaziz ibn Saud. O ibn do nome do monarca, ou o bin do atual príncipe herdeiro, são variações do patronímico árabe, que significa “filho de”. Mohammad bin Salman significa “filho de Salman”, o atual rei. E o costume saudita determinava que a linha sucessória seria traçada pelos descendentes homens diretos do fundador do reino. Ou seja, enquanto filhos de Abdulaziz estiverem vivos, seriam eles os herdeiros, e assim foi desde a morte do fundador, em 1953. E o fundador Abdulaziz teve muitos filhos; o número de descendentes diretos na família real saudita estão na casa do milhar. Com 22 mulheres diferentes, ibn Saud teve 45 filhos homens, além de filhas mulheres.
A regra foi alterada e MBS pode se tornar o primeiro rei saudita que não é filho do fundador do reino, mas neto. Ainda assim, alguns tios de MBS, irmãos ou meio-irmãos do rei Salman, estão vivos, e seriam vistos como legítimos ocupantes do trono. Todos já idosos, ou seja, talvez um reino breve para deixar a poeira baixar. Nos pesadelos de MBS, isso significaria ficar de fora da linha sucessória como um todo. Por exemplo, seu tio Ahmed bin Abdulaziz é um nome sempre veiculado como de consenso, e já ocupou ministérios importantes. E o príncipe Ahmed tem um filho homem, que poderia ser seu herdeiro, colocando MBS como apenas um dos centenas (não é uma hipérbole) de príncipes sauditas. Se pode ocorrer um golpe ou alguma articulação contra MBS, ainda não sabe, mas que existe o desejo, existe.
Pressão turca e America first
A Turquia obviamente está envolvida nas investigações do assassinato, afinal, ele ocorreu dentro de seu território. A inteligência turca teria obtido o áudio da tortura e assassinato de Khashoggi, que Trump afirmou não querer ouvir por ser tenebroso demais. O que não é habitual, entretanto, é a pressão turca para determinar quem foi o responsável e que a pessoa seja culpada; claro, no caso de MBS. O fato de sauditas determinarem que alguns envolvidos na morte serão julgados, inclusive com o pedido da pena capital, transforma-os em meros bodes expiatórios, não satisfazem os desejos turcos.
A Turquia quer constranger ao máximo o reino saudita para obter algo. Trata-se de aproveitar a oportunidade, bem distante de quaisquer virtude de justiça. São duas as possibilidades. Primeira, pressiona os sauditas ao ponto de causar uma crise interna na linha sucessória ou que implique rédeas mais curtas nas ações de MBS. Isso diminui o poder de ação de um rival regional e sua liderança “sedenta ao pote”; enfraquece a coesão de ações contra o Irã que, embora não seja exatamente um aliado turco, é uma potência regional com quem os turcos necessitam negociar no que concerne a Síria; finalmente, coloca Erdogan como um moderador entre os diferentes interesses no Oriente Médio.
A segunda possibilidade é a de pressionar os sauditas para constranger os aliados do reino em Washington. A chancelaria turca já afirmou que considera a postura do governo Trump muito suave, pressiona o assunto de eventuais sanções e critica um comportamento contraditório dos EUA, ao desconsiderar um assassinato de um residente do país por critérios políticos. A contrapartida seria que o governo dos EUA finalmente cedesse em extraditar o clérigo Fethullah Gulen, tido pelo governo Erdogan como seu principal antagonista e conspirador para derrubá-lo.
O pedido de extradição turco é considerado extremamente frágil, com pouca substância jurídica, o que garante que ele foi, até o momento, pouco considerado. É um instrumento político, não legal. Erdogan acusa Gulen de desestabilizar o país, com eventual cumplicidade dos EUA, onde reside, e também estaria por trás da tentativa de golpe de estado em 2016. É possível até que Gulen seja executado caso julgado na Turquia, mais um motivo para a resistência dos EUA no caso. Em ambas as situações, a Turquia ganha, internacionalmente ou domesticamente, e o governo sabe o trunfo que tem em mãos.
Já o governo Trump fica dividido, inclusive com pressão política interna. De um lado, os que defendem sanções contra os sauditas e eventual diminuição da intensidade das relações entre os dois países. Caso essa visão predomine, MBS terá suas posições enfraquecidas e a Turquia vence o primeiro cenário citado anteriormente. Do outro lado, existem os que consideram que os EUA não podem sacrificar as relações com sauditas por uma questão pontual, por mais constrangedor que possa ser. Os sauditas se comprometeram em comprar centenas de bilhões de dólares em armamentos, foram o primeiro destino internacional de Trump e são importantes parceiros contra o Irã.
Todos esses fatores foram evocados em um comunicado da Casa Branca sobre o caso Khashoggi, que abre com a declaração de que “O mundo é um lugar muito perigoso” e conclui com o slogan de campanha “America first”. A declaração de Trump é um constante jogo de palavras que busca justificar as relações com sauditas e amenizar o crime, sem parecer que justificam o assassinato de Khashoggi. O príncipe “provavelmente sabia”, mas “talvez não”; eles dizem que Khashoggi era “perigoso e da Irmandade Muçulmana”, ao mesmo tempo “nada justifica o assassinato”; os sauditas “podem sair do Iêmen”, se os iranianos também o fizerem, dentre outros trechos.
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A Turquia e seu governo vão aproveitar ao máximo a situação, pressionando o governo Trump. Caso Washington prefira fazer vistas grossas para os sauditas e aceitar alguns julgamentos de bodes expiatórios, Ancara não vai deixar isso ser esquecido. Não até ter algum incentivo que cesse o constrangimento. A situação é, em uma conjuntura mais ampla, um lembrete aos EUA que, historicamente, grandes potências que vinculam seus interesses de forma tão visceral à representação por uma potência regional, acabam sendo forçados a abrir mão dos próprios interesses pelos interesses dos parceiros menores.