Jim Mattis era o mais estável secretário de governo dos EUA. Era. O general dos Fuzileiros Navais pediu demissão da Secretaria de Defesa na última semana, após discordar do presidente Donald Trump em relação à nova estratégia do país para a Síria. A decisão do “Monge Guerreiro” e, principalmente, a repercussão dessa decisão, criaram dois problemas para Trump, um dentro e outro fora de casa. E numa péssima hora.
O Aprendiz edição Casa Branca
Dentro de casa, Trump precisa, e prefere, lidar com a economia, que está desaquecendo. O Federal Reserve, algo como o Banco Central dos EUA, subiu a taxa de juros do país, algo que desagradou o presidente. Enquanto Trump conseguiu vitórias importantes, como a aprovação de uma nova legislação rural, a renúncia de Jim Mattis acabou por mudar o foco do debate público e diminuir o alcance de suas vitórias.
Além disso, o governo federal dos EUA encara um shutdown, uma paralisação de suas atividades, bem no final de ano, época de Natal e de virada de calendário. Isso afeta especialmente as dezenas de milhares de famílias de funcionários federais. A razão do shutdown está na divergência entre a presidência e a oposição democrata na aprovação do novo orçamento. Novamente, o pomo da discórdia é a verba, ou não, para a construção do prometido muro na fronteira com o México.
No meio desse turbilhão ocorre a saída de um secretário de confiança, alguém visto como detentor de influência nos arroubos presidenciais, personalizando a estabilidade de décadas de serviço ao país. Ainda mais em contraste com as diversas mudanças de gabinete no governo Trump. Jim Mattis é um dos principais oficiais militares dos EUA e alguém visto como suprapartidário, sem laços muito evidentes com quaisquer um dos partidos do país. Para piorar, sua saída ocorre em protesto a uma decisão vista como abrupta por parte de Trump.
O presidente decidiu retirar todas as tropas dos EUA que estão na Síria, os mais de dois mil militares altamente capacitados que auxiliam e treinam as forças curdas. Um dos componentes das operações dos EUA na Síria nos últimos anos foi o baixo risco para militares do país, baseando-se em aliados para a realização das tarefas pesadas. Essa estratégia ganhou força após a entrada russa no conflito, que sacramentou a vitória do regime Assad. A decisão de Trump pegou seus militares, e os aliados dos EUA, de surpresa.
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Em sua carta de renúncia, publicada abertamente, Mattis não tece nenhuma palavra de louvor, admiração ou carinho a Trump. Ao contrário, as indiretas jorram pelo texto. Mattis diz acreditar que a grandeza dos EUA está baseada na grandeza de seus aliados e de suas alianças, e que elas devem ser bem-cuidadas. Para então emendar que o presidente merece um secretário que combine com a visão presidencial. Ou seja, sutilmente Mattis diz que o presidente Trump não compartilha da visão do general sobre aliados e sua importância.
A situação ficou ainda mais indelicada com o passar dos dias. Na carta, Mattis diz que ficaria no cargo até fevereiro, para garantir uma transição segura e suave com seu sucessor. Ele coloca as necessidades dos milhões de militares e das centenas de milhares de funcionários civis da Defesa como merecedoras dessa atenção, além de reuniões importantes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) em janeiro como motivos dessa transição.
Trump não aceitou. Quis demonstrar força. Determinou que o vice-secretário de Defesa assuma o cargo interinamente já no dia Primeiro de Janeiro de 2019. E não foi o presidente que avisou Mattis. Após dois anos de serviço e de conselhos, Trump ordenou que o Secretário de Estado, Mike Pompeo, fosse dar o recado a Mattis, de que ele está fora imediatamente. Prerrogativa do cargo presidencial, sem dúvida, mas uma indelicadeza que não pegou nem um pouco bem e dá mais uma dor de cabeça para Trump nesse cenário político.
O que acontecerá na Síria?
Além de problemas em casa, a decisão de Trump também causa incógnitas na Síria. A primeira delas é justamente a luta contra o Daesh, o autointitulado Estado Islâmico, que Trump afirmou derrotar e que seria prioridade no combate na Síria. A segunda incógnita é o que acontecerá e como agirão os grupos curdos que agora estarão sem o amparo militar direto dos Estados Unidos.
A terceira incógnita é como será o comportamento turco diante dessa notícia. Os turcos têm nos curdos os seus principais adversários, vistos como inimigos internos e externos. A criação de um Curdistão é vista como uma ameaça à segurança nacional da Turquia e o tema é bastante complexo, merece atenção em uma coluna futura dedicada exclusivamente a isso. O fato é que a Turquia já anunciou uma ofensiva contra regiões controladas pelos curdos dentro do território sírio.
A Turquia vê os grupos curdos que agem dentro da Síria e que hoje possuem uma virtual autonomia como financiadores, alimentadores dos grupos curdos dentro da Turquia, que são considerados terroristas. A decisão de Trump tem um timing curioso, já que veio após uma conversa telefônica entre ele e o presidente da Turquia, Recep Erdogan. E, após a decisão de Trump, os dois presidentes novamente falaram ao telefone.
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E essas incógnitas estão correlacionadas. Por exemplo, os grupos curdos que, ao lado de forças dos Estados Unido, lutaram contra o Daesh, já declararam que, em caso de ofensiva turca, concentrarão seus esforços em deter as forças turcas. Abandonarão a luta contra o Daesh, o que inclui a guarda de milhares de terroristas prisioneiros. O próprio Daesh pode se beneficiar de mais uma luta interna na região, circunstância similar à que permitiu o seu fortalecimento.
Não se deve tomar a luta contra o Daesh como encerrada ou vitoriosa. O grupo ainda detém pequenas parcelas de território e, principalmente, suas ideias ainda reverberam em milhares de militantes, não apenas na Síria. Tanto que a decisão dos Estados Unidos foi motivo uma reunião do conselho de Defesa do Iraque, que propôs o envio de forças iraquianas para dentro de território Sírio, com a eventual anuência do regime Assad.
Dilemas e escolhas
Por um lado, Trump está cumprindo uma promessa de campanha. Trazer de volta os soldados dos Estados Unidos que estão na Síria; ele também anunciou a retirada de metade do contingente que está no Afeganistão. E o presidente dos EUA gostaria de ter feito isso antes, a decisão foi adiada por insistência do próprio Jim Mattis. Além disso, a presença dos EUA não era bem vista pelo governo Assad; a retirada foi inclusive elogiada pelo principal fiador de Assad, Vladimir Putin, que afirmou mais de uma vez que tropas e forças estrangeiras na Síria, sem autorização da ONU ou do governo Assad, devem se retirar.
Enquanto Trump cumpre mais uma promessa no sentido America First, ao mesmo tempo essa decisão ocorre no período em que o Grupo de Astana, que envolve Rússia, Turquia e Irã, encontrou-se em Genebra para determinar o início dos trabalhos da nova constituinte síria. Se o poder de barganha dos Estados Unidos para o futuro da Síria já era diminuto, com essa retirada ele agora é menor ainda.
Os Estados Unidos, além disso, apoiam interesses opostos. De um lado apoia a Turquia, que agora está melhorando suas relações com os Estados Unidos e representa no Grupo de Astana a chamada oposição síria. Os turcos são os maiores beneficiados com a decisão da retirada dos EUA, e também anunciaram a compra de material bélico dos EUA, superando as sanções recentes.
Ao mesmo tempo, o governo Trump apoia os países da península arábica na Síria, como a Arábia Saudita, que, a contragosto, colaborarão com a reconstrução da Síria sob o regime Assad. Justamente para conter a expansão da influência turca, que ajuda a Irmandade Muçulmana, também apoiada pelo Qatar.
No final das contas, em uma situação difícil e que impõe dilemas, Trump tentou uma solução rápida e que lhe favorecesse internamente, com o eleitorado. Não deu certo. Causou desgaste interno com seus aliados e dentro de seu gabinete, com o agora ex-secretário de Defesa, e também um desgaste externo, sendo visto como alguém que está abandonando um dos seus principais aliados desses últimos anos, jogando os curdos aos lobos.
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