A balança de poder no Oriente Médio foi modificada de forma decisiva quarenta anos atrás. No dia Onze de Fevereiro de 1979 era proclamada a República Islâmica do Irã, após a revolução do mesmo ano. Até aquele momento, os protagonistas do Oriente Médio eram as repúblicas árabes e os países do Levante: Iraque, Síria, Líbano, Israel, Jordânia e Egito. Protagonistas no campo político e militar, como visto nos conflitos entre eles, e também na área econômica, buscando um processo de industrialização desenvolvimentista.
Até o início da década de 1970 a península arábica ainda passava por processos de consolidação de seus novos regimes e ainda não eram as potências energéticas e financeiras que são hoje; Dubai, por exemplo, era pouco mais que uma cidade no deserto. E o Irã? Após séculos de glórias persas, o Irã estava reduzido a um Estado fraco e disputado pelas potências, especialmente russos e britânicos.
Espremido entre gigantes
Desde o final do século XVIII, o atual Irã, na época a Pérsia da dinastia Qajar, estava espremido entre potências que buscavam expandir sua influência e lhe tomar territórios. O império russo ao norte, os Otomanos ao oeste e os britânicos ao leste, senhores da Índia. Os atuais países Geórgia, Bahrein, Azerbaijão, Quirguistão, Turcomenistão, Tajiquistão e Uzbequistão foram todos perdidos nesse período, além de partes do Afeganistão.
A busca pelo domínio na Ásia Central no século XIX é chamada de Grande Jogo, um imenso tabuleiro de xadrez geopolítico, entre russos e britânicos. O principal interesse russo era conseguir uma saída marítimas em águas quentes, como o Golfo Pérsico ou o controle dos estreitos de Bósforo e Dardanelos.
Já os britânicos pretendiam evitar que os russos fossem uma ameaça ao seu protagonismo naval e interiorizar sua presença comercial. Essa disputa entre uma potência terrestre, o enorme império russo, e uma potência marítima, os britânicos, é inspiração da tese sobre a “região pivô” da Eurásia, de Halford Mackinder, o pai da geopolítica moderna, cujas ideias ressoam até nossos dias. E o Irã? Nesse processo, ele era uma peça essencial no tabuleiro.
Seu tamanho, população, riquezas naturais e o controle do Estreito de Ormuz faziam do Irã um aliado, ou subordinado, de suma importância. Por todo o século XIX e boa parte do século XX, o Irã não terá uma política externa independente, uma capacidade de projeção de forças e interesses. Ele será dividido e subordinado aos interesses das principais potências, especialmente os vizinhos russos e britânicos. Basicamente, o Irã será uma colônia.
Partilha e interferências
Entre 1905 e 1911, a Pérsia passou por um período de revolução e protestos contra o governo, motivados justamente pela presença estrangeira no país e as concessões de exploração econômica. Essa mesma revolução foi derrotada com apoio anglo-russo, que manteve os Qajar no poder e aboliu a tentativa de transformar o país em uma monarquia constitucional. Russos ocuparam o norte do país e artilharia britânica bombardeou o parlamento do país em 1908.
A guarda real era a dos Cossacos Persas, uma unidade militar formada aos moldes dos regimentos russos de cossacos; os seus oficiais eram russos em serviço persa, embora os interesses do Czar fossem claramente priorizados. Em meio ao período revolucionário, é assinada a Convenção Anglo-Russa de 1907, que formaliza esferas de influência; a Rússia ao norte e os britânicos ao sul, com autoridade sobre temas econômicos e administrativos.
Em 1908, os britânicos descobrem petróleo na região do Cuzistão, hoje uma das maiores produtoras de petróleo do mundo e um dos objetivos de Saddam Hussein na guerra Irã-Iraque de 1980. Com a descoberta, é fundada a Companhia Petrolífera Anglo-Persa (Anglo-Persian Oil Company), atual BP, uma das maiores empresas do mundo. A Primeira Guerra Mundial e a necessidade de proteger os campos de petróleo acabou justificando uma presença militar britânica ainda maior e de caráter permanente na Pérsia.
Em 1921 os Qajar são finalmente depostos, em um golpe com apoio britânico. O comandante dos pretorianos Cossacos Persas, Reza Khan, liderou o golpe e assumiu o trono como Xá Reza Pahlavi. Será ele que, em 1935, pede à comunidade internacional que empregasse o termo Irã para nomear o país. Durante a Segunda Guerra Mundial, o país será novamente ocupado, por britânicos e soviéticos.
O Irã servia de importante rota de contato entre os dois aliados; o petróleo soviético chegava aos britânicos, e material de guerra anglo-americano chegava aos soviéticos. Por se opor ao envolvimento iraniano no conflito, o Xá é “convidado” a abdicar em nome do filho, Mohammad Reza Pahlavi. É extremamente simbólico que tenha sido em Teerã, em 1943, a primeira conferência do “Big Three” da Segunda Guerra: EUA, União Soviética e Reino Unido.
Mais um golpe
Em Teerã foi acordado que o Irã seria um país neutro na divisão de influências do mundo pós-guerra. O país teria sua independência reconhecida e poderia seguir o caminho que ele autodeterminasse. No dia Primeiro de Maio de 1951, o premiê iraniano, Mohammed Mossadegh, conseguiu que o parlamento aprovasse a nacionalização do petróleo do país. A Anglo-Iranian foi extinta. Como reação, os britânicos propuseram um embargo internacional ao petróleo iraniano.
Os EUA não apoiaram a ideia do embargo, temendo que isso causasse um favorecimento aos soviéticos, que poderiam se apresentar como a alternativa viável. Estava criada uma crise entre o governo Mossadegh o xá, propenso aos seus aliados britânicos. O xá, instigado e apoiado pelas potências ocidentais, que temiam que Mossadegh aproximasse o país da potência soviética, demitiu o premiê de forma sumária e decretou a reversão das políticas adotadas pelo governo.
Protestos tomaram as ruas, o Xá brevemente fugiu do país para Roma e retornou quando as forças armadas iranianas sufocaram os protestos. Mossadegh ficou o resto da vida em prisão domiciliar, cerca de trezentas pessoas morreram e a monarquia iraniana assumiu mais poderes para si, tornando o regime ainda mais autoritário e com o característico tom anticomunista da Guerra Fria. Em 2013, sessenta anos depois, o governo dos EUA desclassificou grande quantidade de documentos que mostram o envolvimento do país no golpe de 1953.
O autoritarismo do governo, denúncias de corrupção e de vida luxuosa por governantes, inflação por causa do petróleo e pautas morais com apelo popular, lideradas pelos clérigos muçulmanos na oposição, todos esses serão ingredientes da Revolução Islâmica de 1979. Todos eles frequentemente debatidos em explicar os motivos e consequências da revolução, com um governo teocrático e autoritário, fechado ao Ocidente.
Paradoxalmente, é a primeira vez em séculos que o Irã ocupará novamente uma posição de potência. O aspecto internacional da Revolução Iraniana é, habitualmente, deixado em segundo plano, mas é necessário entender que o Irã, por dois séculos, foi apenas uma peça num tabuleiro muito maior. Controlado, sem desejos ou pautas próprias. A ânsia de furar essa sina de estar relegado ao segundo plano também fez parte da revolução e faz parte do atual regime, com o acordo nuclear e a busca por mais parceiros comerciais.
Claro que essa pauta de projeção iraniana também possui aspectos condenáveis, como a defesa aberta de destruição de outro país soberano, como Israel; entretanto, se alguém pretende compreender o Oriente Médio além das caricaturas de “bonzinhos e malvados”, é preciso compreender o Irã como potência regional. E como esse fenômeno é recente e impactou, e impacta, todas as outras relações e alianças na região.