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As relações com o Paraguai são maiores que Stroessner, presidente

Alfredo Stroessner, em foto de julho de 1973, em Paris. Foto: AFP (Foto: )

O personalismo é um ingrediente da política que é sedutor ao mesmo tempo que é contraproducente. O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, esteve presente na posse da nova diretoria da usina hidrelétrica binacional de Itaipu. Pelo lado brasileiro, assume o general Joaquim Silva e Luna, ex-ministro da Defesa no governo Michel Temer, o primeiro ocupante dessa cadeira oriundo das academias militares. Estava presente também a principal autoridade executiva do vizinho, o presidente paraguaio, Mario Abdo Benítez.

Em seu discurso, Bolsonaro disse as palavras que rapidamente ecoaram pela internet e viraram “polêmica”. Abro aspas para o presidente: “Isso tudo não seria suficiente se não tivesse, do lado de cá (o lado paraguaio, literalmente), um homem de visão, um estadista, que sabia perfeitamente que seu país, o Paraguai, só poderia prosseguir, progredir, se tivesse energia. Aqui também a minha homenagem ao nosso general Alfredo Stroessner”.

“Nosso general”

Em bom português, Alfredo Stroessner foi um crápula. Cresceu na carreira por aliados políticos, envolvidos em golpes dos mais diversos. Se proclamava um herói da Guerra do Chaco contra a Bolívia, mas bombardeou mais a própria capital do que contra qualquer inimigo estrangeiro. Mais que um eufemístico “mal necessário” contra movimentos socialistas no âmbito da Guerra Fria, Stroessner foi um típico caudilho latino-americano. Cansado de ser coadjuvante, liderou uma quartelada pra chamar de sua em 1954, meia década antes da revolução em Cuba.

Não que seus antecessores fossem anjinhos, claro. Stroessner passou os próximos trinta e cinco anos no poder, consolidando o Stronato, um culto de personalidade marcado pela subserviência dos outros poderes; simbiose entre Estado e partido em que ser integrante do Partido Colorado era algo necessário até para planos de saúde; fartas verbas para as forças armadas e a polícia conduzida por seus aliados; prisão, tortura e morte de opositores, com cerca de cinco mil vítimas fatais; e reformas constitucionais para permitir sua continuidade no poder, via “eleições” fraudulentas. Seis delas, consecutivas.

Além de um governo que reúne tudo de condenável numa entidade política, Stroessner era um pedófilo em série que usava seus soldados para o rapto e a violação de meninas paraguaias. o tema é o centro do documentário Calle de Silencio (Rua do Silêncio). Um caso simbólico foi o de Julia Ozorio, menina que foi escrava sexual dos doze aos quinze anos, dentre outros casos levantados pelo jornalista Ariel Palacios; todos com fontes, para deixar claro que independente de preferências sobre o jornalista em questão.

Stroessner e seu governo também tiveram protagonismo em outras atividades que foram, e são, extremamente prejudiciais ao Brasil, sua economia e sua sociedade. O contrabando e o tráfico de drogas. Ditaduras, por sua natureza autoritária e pouco transparente, são palcos ideais para atividades condenáveis e para a corrupção. Vide os laços de Maduro com o Hezbollah hoje e o comprovado envolvimento de Pinochet com corrupção e o tráfico de cocaína.

Ou acreditam que Pinochet, Stroessner, dentre outros caudilhos latino-americanos, juntaram grandes fortunas e patrimônios imobiliários financiados por “amor à pátria” e salários devidos aos cargos? A corrupção, inclusive, que encareceu a construção da usina de Itaipu. Um dos principais aliados de Stroessner foi Auguste Ricord, francês colaborador com os nazistas e traficante de heroína. O filho do ditador, “Freddie” Stroessner, era um playboy com ligações com círculos do tráfico internacional de cocaína.

Até mesmo seu aliado, genro e sucessor Andrés Rodríguez, que protagonizou o golpe contra o próprio Stroessner, era considerado um possível chefe do tráfico de cocaína. A posição geográfica do Paraguai, em contato com diferentes fronteiras, possibilita o país ser um centro de distribuição de comércio. Seja esse comércio legal ou ilegal. Diversas fontes da época, jornalistas ou oficiais, como do Estado dos EUA, investigam esse cenário propiciado por Stroessner e que o beneficiou profundamente.

Então, quando o presidente do Brasil, décadas depois, chama essa figura de estadista, de “nosso general”, ele comete uma injustiça e mostra um desequilíbrio em suas propostas atuais. Como criticar um Maduro suspeito de envolvimento com o narcotráfico enquanto se louva um caudilho que ficou trinta e cinco anos no poder em seu país? Simplesmente não é razoável, é submeter uma projeção internacional e uma mensagem ao recorte ideológico.

É um crápula, mas o nosso crápula?

E aqui entra o aspecto mais complicado da frase de Bolsonaro. Stroessner foi um crápula assim como vários outros crápulas governaram, e governam, países de forma autoritária. E, por uma miríade de motivos, é necessário sentar e negociar com tais figuras. Por exemplo, para evitar uma escalada nuclear, como quando Trump, um presidente eleito de uma república democrática, se senta com Kim Jong-un, herdeiro de um governo autoritário e ditatorial.

Ou então a longa relação entre EUA e Arábia Saudita, uma monarquia absolutista, repressora e fundamentalista, que financia o terrorismo. Mesmo assim, basicamente desde a Segunda Guerra Mundial, os presidentes dos EUA mantém boas relações com os sauditas, seja Trump, seja Obama, seja quem for. Esse é inclusive um outro problema e um tema interessante para o futuro, as contradições desse discurso externo dos EUA.

Brasil e Paraguai dividem uma fronteira desde a fundação dos dois países, duzentos anos atrás. Desde então foram ditaduras, monarquias parlamentares, governos democráticos, inimigos em guerras, parceiros no comércio. Até uma potência ocupante o Brasil foi nessa relação. São relações bicentenárias que, espera-se, durem outros séculos adiante. Um dos focos dessa cooperação é o regime fluvial dessa fronteira partilhada, riquíssimo.

Desde o final da década de 1950, Paraguai e Brasil já conversavam sobre parcerias no setor hidrelétrico; antes mesmo de Castelo Branco, que Bolsonaro erroneamente colocou, por preferência, como marco inicial desse processo. A usina era interessante para o Brasil e para o Paraguai. A negociação tinha que ocorrer com o governo Stroessner? Ok, que se negocie então. Pragmatismo e realismo nas relações internacionais.

Não se tratava de, com JK, com Jânio, com Jango, com Castelo Branco, com quem fosse, de julgar, avaliar ou trocar juras de amor com Stroessner. Se tratava do Estado brasileiro negociar com o Estado paraguaio algo benéfico aos nossos interesses. Naquele momento, era com Stroessner que se deveria negociar. A caneta estava com ele. Foi ao caudilho que o Estado brasileiro teria dado garantias de segurança, mantidas pelo governo Sarney, que concedeu asilo ao ditador.

Asilo esse mantido por todos os presidentes até Lula. Stroessner morreu em 2006, no Brasil, sob risco de prisão caso voltasse ao Paraguai, seu desejo moribundo. Nesse período, em 1999, o Brasil governado por FHC agiu no Paraguai, para evitar o agravamento de uma crise. Todas essas ações foram para preservar os interesses nacionais brasileiros, que incluem Itaipu, não para louvar “nosso general” na pessoa de um caudilho criminoso. Era algo que tinha que ser feito, não que se achava bonito à se fazer.

Os dois Estados antecedem o caudilho e continuam existindo muito depois dele. Assim como a usina binacional; oras, algumas usinas centenárias ainda estão em operação pelo mundo. Mesmo outras usinas enormes, como a Hoover ou a de Assuã, antecedem Itaipu, que continuará operando por décadas futuras. A usina é duradoura.

Ela também operou sob os governos Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma. Inclusive, a atual configuração da usina foi estabelecida com a expansão concluída em 2006 e 2007, sob o governo Lula no Brasil e de Nicanor Duarte no Paraguai. Os nomes de indivíduos específicos não são maiores do que a relação entre Brasil e Paraguai ou do que a importância estratégica e econômica da usina. Quanto menos de um indivíduo com o currículo de Stroessner.

E entra outro ingrediente da declaração de Bolsonaro: afagar a pessoa do presidente paraguaio. Mario Abdo Benítez é um dos “filhos do Stronato”, nome dado aos poucos políticos cujas carreiras remontam ao período da ditadura, já que seu pai foi secretário pessoal do ditador, membro do “quarteto de ouro”, os quatro principais assessores de Stroessner.  Sua fortuna pessoal é herança de seu pai, que foi investigado por enriquecimento ilícito no início da década de 1990, já que essa mesma fortuna foi feita sob a ditadura. O atual presidente foi um dos poucos integrantes do Partido Colorado que propôs uma homenagem quando da morte do ex-ditador, em 2006.

Fazer esse tipo de declaração como a feita por Bolsonaro é personalizar a relação entre dois vizinhos e parceiros. Poderia-se agradecer ao “governo paraguaio”, ao Estado do Paraguai, talvez até melhor elogiar a visão e o progresso do povo paraguaio, como soberano. Quiçá um “povo irmão”, ou, para ser menos sentimental, um “vizinho valoroso”, um vizinho importante. Coisas que o Paraguai realmente é, pela economia, pela fronteira, pela comunidade de brasiguaios. Não, colocou-se Itaipu não como um projeto de dois Estados, mas como a visão de alguns governantes específicos. Diminuiu as relações entre Brasil e Paraguai à personalização de um ditador.

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