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“Vocês me trazem em sua carne obscura, a mim, cuja luz foi a essência, no tríplice recesso de suas tripas, eu, Lúcifer… eu que os arrolo, todos. Nenhum de vocês me escapa. Reconheço pelo cheiro qualquer animal do meu rebanho” (George Bernanos, Sob o Sol de Satã)

Caros leitores, estreio hoje o meu blog na Gazeta, e antes de mais nada quero lhes dar as boas-vindas. Para quem não me conhece, sou autor do livro A Corrupção da Inteligência, lançado pela editora Record no ano passado, e ora já em sua quinta edição. Nele, esforcei-me por retraçar o mais minuciosamente possível as origens culturais e intelectuais de nossa desgraça política contemporânea, e, mais especificamente, do período de 13 anos vividos sob o infame regime lulopetista, cujo timoneiro e grande líder está agora às raias da prisão.

A ênfase no fundamento cultural da política, que será também a tônica deste blog, deve-se em primeiro lugar à minha experiência pessoal de mais de uma década no universo das ciências sociais brasileiras, onde pude testemunhar a degradação intelectual ambiente, pouco a pouco tomado, das reitorias aos corpos docentes, por uma militância de extrema-esquerda intolerante, totalitária e sedenta por poder, a mesma que agora está aí, corrompendo a universidade pública em favor de sua facção política, mediante cursos fraudulentos (ministrados por falsos sociólogos, falsos historiadores e falsos professores de Direito) sobre o que chamam de “golpe de 2016”.

Mas, para além dessa razão de ordem autobiográfica, por assim dizer, há também uma causa teórica para a referida ênfase, qual seja a de haver aprendido com os clássicos da literatura e da ciência política a importância de buscar o permanente por baixo do contingente, e de desenvolver a sensibilidade para pressentir o desenlace dos fatos políticos quando são ainda meras virtualidades na mente dos homens de letras. Desde que a li pela primeira vez, jamais esqueci a lição de Viktor Frankl: “Não foram apenas alguns ministérios de Berlim que inventaram as câmaras de gás de Majdanek, Auschwitz, Treblinka: elas foram preparadas nos escritórios e salas de aula de cientistas e filósofos niilistas, entre os quais se contavam e contam alguns pensadores anglo-saxônicos laureados com o Prêmio Nobel”.

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Talvez o leitor esteja se perguntando sobre a foto de capa deste blog. Ela capta o momento exato em que Máximo Gorki, visivelmente desconfortável, espreme-se entre os visitantes Stalin e Kliment Voroshilov, alto oficial do Politiburo soviético. Poucas imagens poderiam simbolizar tão bem o que chamo de “corrupção da inteligência”. Poucas materializariam com tal vivacidade a relação promíscua entre o intelectual e o poder.

Filho orgulhoso do Iluminismo europeu, Gorki foi desde cedo cativado pela ideia de que a educação e a arte tinham o potencial de avançar moralmente a humanidade. Essa tendência fez com que Trotsky o houvesse alcunhado de “salmodista cultural”. E, com efeito, Gorki sempre encarou a revolução do ponto de vista da cultura. Na virada do século 19 para o 20, já havia se aventurado em várias das novas correntes ideológicas que fervilhavam na Rússia de Nicolau II. Tendo abandonado o populismo, desiludido com o “reacionarismo” de cunho religioso do campesinato russo, passou a depositar sua fé humanista no proletariado urbano, quando então descobriu o marxismo.

Dizia-se, contudo, um mau marxista. Em artigo de 1917, declarou-se antipático aos que se curvavam às pressões da ideologia: “Incluo-me sempre entre os heréticos”. Entusiasmou-se com a revolução de fevereiro daquele ano, mas condenou o golpe bolchevique de outubro, posteriormente rompendo relações com o seu velho amigo Lenin, e tornando-se desafeto de Zinoviev. Por tudo isso, e também por problemas de saúde, deixou a Rússia em 1921, exilando-se em Sorrento, na Itália, durante sete anos, de onde continuou acompanhando ativamente a vida intelectual russa.

A convite de Stalin, Gorki retornou à sua terra natal em 1928. Era ao mesmo tempo um retorno e uma primeira visita, pois que chegava à recém-fundada União Soviética. O país era agora governado com mãos de ferro pelo czar vermelho, no regime que ficou conhecido como “a revolução desde cima”. No contexto da implementação dos Planos Quinquenais e do chamado “socialismo num só país”, a ovelha desgarrada foi recebida com pompa e circunstância, num clima de “o bom filho à casa torna”. Não querendo perder a chance de fazer daquele herói cultural russo o propagandista do novo regime, Stalin o encheu de mimos e regalias.

De fato, a partir de 1928, e até a sua morte em 1936 (ainda envolta em suspeitas de assassinato político), Gorki entrou numa espiral de abjeção moral e autocastração intelectual dignas de pena (ou raiva, a depender do grau de compaixão). De antigo apóstolo da liberdade, passou a porta-voz oficial das políticas de Stalin. Mantendo as melhores relações com o Diretório Político Unificado do Estado (OGPU), e estreita amizade com o seu diretor, G. Yagoda, deu o seu imprimatur aos gulags, à política de coletivização da agricultura (responsável pela morte de milhões por inanição) e aos julgamentos farsescos de “traidores” (muitos dos quais amigos do escritor, mas por ele renegados em função da causa). Submetendo-se completamente às exigências cada vez maiores do “líder do povo”, Gorki logo se tornou um prisioneiro em seu próprio país, isolado e apartado de seu antigo ciclo de amizades.

Hoje, o debate sobre as razões do retorno de Gorki permanece tão intenso quanto no início, a despeito do acúmulo de fontes primárias e documentos sobre sua relação com o governo soviético. Para muitos na Rússia, o período entre 1928 e 1936 ficou conhecido como tragediia Maksima Gor’kogo, “a tragédia de Máximo Gorki”, título de um artigo da jornalista Ekaterina Kuskova, jornalista e outrora amiga do escritor. Pode parecer estranho falar em “tragédia” no caso de alguém cuja corrupção intelectual tanto mal causou a terceiros. Mas o fato é que Gorki era um homem psiquicamente dilacerado. A despeito de toda a covardia (em alguma medida compreensível diante de poder tão terrível), restou-lhe na consciência um resquício de integridade, mantendo-o num estado perpétuo de culpa e constrangimento, tão bem retratado na foto em questão. Há um inegável elemento trágico em sua biografia. “Até o seu funeral, o momento mais íntimo para uma pessoa”, comentou um amigo que lá esteve, “foi apropriado pelo Estado”.

Em junho de 1935, um ano antes do último ato da tragédia, o socialista francês Romain Rolland visitou o seu velho amigo na URSS, e registrou em seu diário de viagem: “Ainda hoje vejo o rosto de Gorki diante dos meus olhos, ao aproximar-se do carro. Ele está pálido, os olhos cheios de infelicidade e gentileza. É um homem gentil e fraco. Age contrariamente à sua natureza, faz grandes esforços para não condenar as ações de seus poderosos amigos políticos. Há, em sua alma, uma feroz batalha, da qual ninguém tem conhecimento”.

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Os últimos anos de Gorki podem bem nos servir de lição quanto aos males causados pela corrupção da inteligência. No Brasil contemporâneo, todavia, não parece haver qualquer drama de consciência semelhante entre os nossos corruptos intelectuais, talvez porque já nem haja neles uma consciência autônoma, para começo de conversa. Sendo assim, o gênero adequado ao nosso problema não é decerto a tragédia, mas possivelmente um outro, bem típico: a pornochanchada.

O que pretendo dividir com vocês aqui, entre outras coisas, são algumas das ferramentas cognitivas que, ao longo desses últimos anos dedicados ao tema, fui desenvolvendo para diagnosticar a corrupção intelectual nas suas mais variadas formas, das mais sofisticadas às mais grosseiras. Há a todas estas uma característica comum e permanente: o senso de inadequação do intelectual, que se manifesta numa experiência de isolamento, logo convertida em ressentimento e impaciência. Sentindo-se socialmente desvalorizado e impotente em suas elucubrações solitárias, o intelectual anseia por um poder de maior impacto e imediaticidade, passando a ver na militância político-ideológica a possibilidade de uma revanche contra os bodes expiatórios projetados por sua má consciência. Como bem notou Raymond Aron: “Quando o intelectual não se sente mais ligado nem à comunidade nem à religião de seus antepassados, pede às ideologias progressivas para que tomem conta de toda a alma”.

Aron foi feliz ao falar em tomada da alma, pois há mesmo algo de tipicamente faustiano na relação do corrupto intelectual com o poder político. Convém lembrar do estado de espírito de Fausto antes do encontro fatal com Mefistófeles. Com a cabeça fincada nas mãos, e os cotovelos sobre a mesa de estudos iluminada pela fraca luz de um candeeiro, tal qual o descreve Goethe, a certa altura o célebre doutor dá-se conta da própria miséria. Perscrutando, entediado, o gabinete de estudos – que lembra o cubículo claustrofóbico de Raskolnikov –, principia autocomiserada lamúria, que ao diabo apetece tanto quanto o sangue na água aos tubarões:

“Que masmorra que é isto! E aqui me vou gastando neste covil infecto, abominoso, infando, lôbrega escuridade a que o celeste dia, prazer da terra toda, um raio a custo envia pelos vidros de cor em treva mascarado. Para onde quer que fuja o olhar do emparedado, bate nesta Babel de livros bolorentos, pastagem da polilha, informes, sonolentos, e em rumas de papéis, do tempo denegridos, caótico tropel de abortos esquecidos, que trepa, galga, encobre, enluta, afeia, inunda, a casa desde o solho à abóboda profunda; sem falar no sem-fim de drogas, pós, essências, máquinas, que sei eu! misérias, importâncias, que já me infundem tédio. E a isto se apelida o meu mundo. Isto é mundo, ou esta vida é vida?”

Assim desgostoso com o presente estado de coisas, e projetando a sua corrupção interior no mundo, o intelectual começa a regatear a própria inteligência, em tese o seu maior patrimônio, nas feiras e mercados da ideologia. Transbordando do que Eric Voegelin chamou de “revolta egofânica” (a insurreição contra a ordem transcendente do ser, a pretensão humana de se autocriar), entrega-se o infeliz às utopias políticas, sacralizando o futuro, que, na elegante formulação de Albert Camus, “é a transcendência dos homens sem Deus”.

Também àquela fragilidade d’alma estão atentas as potestades infernais. Quem o confessa, como nos conta C. S. Lewis, é o velho diabo Fitafuso em carta ao seu jovem aprendiz Vermebile, mostrando nisso, até mesmo o pai da mentira, um senso de realidade superior ao dos nossos egofânicos intelectuais: “Ao fazê-los pensar sobre o Futuro, nós estamos fazendo com que eles pensem em coisas irreais. Em uma palavra, o Futuro é, de todas as coisas, aquela que menos se assemelha à eternidade”.

Além de diagnosticar a doença, pretendo também oferecer o remédio. E não há nada melhor para prevenir o espírito contra os germes da corrupção intelectual do que a exposição a bons modelos, ou seja, pensadores que mantiveram sua integridade intelectual a despeito das circunstâncias, persistindo na busca da verdade quando tudo em volta induzia à mentira. Há uma plêiade deles ao longo da história, inclusive no Brasil, e não podemos nos dar ao luxo, neste momento de crise cultural, de negligenciá-los. Espero rechear este blog com seus ensinamentos, que podem e devem ser multiplicados. E convido o leitor a juntar-se à missão difícil, assumidamente imodesta, e, todavia, urgente, de restauração da inteligência nacional. Quem topa?

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