“Um genocídio não é uma erva daninha que cresce sobre duas ou três raízes, mas sobre um nó de raízes que mofaram debaixo da terra sem ninguém perceber”
(Claudine Kayitesi, sobrevivente tutsi da colina de N’Tarama)
Raros foram os livros-reportagem que me causaram tanto impacto quanto este Uma Temporada de Facões: relatos do genocídio em Ruanda (Companhia das Letras, 2005), que já folheara algumas vezes, devolvendo-o em seguida à estante, e que finalmente termino de ler. Seu autor, o jornalista e correspondente de guerra Jean Hatzfeld, produziu um monumento de perturbadora vivacidade sobre o que se passou naquele pequeno país africano entre abril e julho de 1994, quando, enquanto nós brasileiros comemorávamos o tetracampeonato da seleção canarinho, 800 mil pessoas eram retalhadas até a morte, uma a uma, por seus vizinhos.
Dando continuidade à reportagem iniciada em obra anterior, O Nu da Vida: relatos dos pântanos ruandeses, na qual se baseara em relatos dos poucos tutsis sobreviventes à carnificina, aqui a matéria prima de Hatzfeld são os depoimentos de assassinos hutus colhidos na prisão de Rilima, no sudeste do país. As descrições dos matadores são terrificantes, muitas vezes repulsivas, mas por isso mesmo instigantes a uma reflexão sobre a facilidade com que, de uma hora para a outra, se açuladas por uma retórica odienta e um ambiente ideologicamente tóxico, pessoas até então decentes podem converter-se em genocidas, passando a ver como “baratas” (cancrelats) aqueles que, até o dia anterior, talvez fossem seus companheiros de futebol, colegas de escola ou irmãos de paróquia.
No relato de um dos assassinos sobre a sua primeira vítima, um vizinho, podemos discernir com nitidez o processo de desumanização ali em curso: “Ele já não era propriamente uma pessoa comum, quer dizer, como essas que a gente encontra todo dia. Suas feições eram bem parecidas com as da pessoa que eu conhecia, mas nada me lembrava com nitidez que eu vivia a seu lado desde muito tempo. Não sei se o senhor consegue me entender bem. Era um reconhecimento, sem o conhecimento”. Na mesma linha, outro entrevistado confessa: “Quando descobríamos uns tutsis nos charcos, deixávamos de vê-los como humanos. Quer dizer, com gente parecida conosco, dividindo um pensamento e sentimentos semelhantes. A caçada era selvagem, os caçadores eram selvagens, as presas eram selvagens, a selvageria enfeitiçava os espíritos”.
O frenesi da mortandade conduzia as ações, e os matadores imitavam-se uns aos outros, numa escalada sangrenta. Sob as ordens berradas dos Interahamwe, os implacáveis milicianos hutu, os novos assassinos agiam mecanicamente, como num dia exaustivo na lavoura, pensando apenas em tomar a apreciada cerveja Primus e comer os tradicionais espetinhos de carne ao fim do dia. Nos pântanos onde os tutsis se escondiam, um apito anunciava o fim do expediente. “Se tem de obedecer às ordens das autoridades, se foi adequadamente sensibilizado, se for impelido e arrastado, se vir que a matança será total e sem consequências nefastas no futuro, você se sente tranquilo e sossegado. Vai em frente sem nenhum acanhamento” – diz aquele mesmo entrevistado, respaldado por um colega de prisão: “Esse programa repetido nos dispensava de refletir sobre o que fazíamos. Íamos e voltávamos, sem cruzar com uma ideia. Caçávamos porque era o programa dos nossos dias, até que tudo tivesse terminado. Nossos braços comandavam nossa cabeça, e em todo caso nossa cabeça não dava mais palpite”.
O trabalho de matar era relativamente fácil. Certo dia, uma patrulha acuou no fundo de uma floresta um pequeno grupo de tutsis, logo dispersado por uma chuva de granadas. “Na debandada, um velho, que já não era dos mais aptos, foi empurrado enquanto corria. Caiu na minha frente; cravei-lhe a inkota nas costas. Um facão para abater o gado, que eu havia pegado de manhã (…) Tudo tinha acontecido de maneira muito suave, não precisei lutar. No fundo, nessa primeira vez fiquei surpreso com a rapidez da morte, e também com a moleza do golpe, se posso dizer assim” – explica um assassino. Acrescenta outro: “Eu matava com frequência, e começava a sentir que aquilo não tinha nenhum efeito em mim. Não sentia prazer, sabia que não seria punido, matava de forma inconsequente, adaptava-me com facilidade. Partia de manhã sem o menor problema, tinha pressa de ir, via que o trabalho e o resultado eram benéficos para mim, só isso”.
Terminando de ler esses e outros relatos ainda bem mais terríveis, dos quais poupo o leitor, tive a exata noção da particularidade da espécie ruandesa no gênero dos genocídios, sobretudo se a compararmos aos mais célebres dentre eles, em especial ao Holocausto nazista. Em primeiro lugar, nota-se que, embora pareçam ser irrupções extraordinárias no curso da história, cada genocídio traz as marcas específicas das condições materiais, sociais e culturais que o originaram. Como bem observa Hatzfeld, o Holocausto trazia as marcas de uma Alemanha altamente industrializada e urbana. Os nazistas montaram uma assombrosa indústria da morte, uma linha de montagem impessoal e automatizada, que produzia cadáveres como uma fábrica produz parafusos.
Ruanda, por sua vez, era uma sociedade basicamente rural e agrícola à época do genocídio, um vasto campo pontilhado por vilarejos. Os assassinos hutus, lavradores desde tempos imemoriais, jamais tiveram uma agricultura mecanizada e tecnologia agrônoma avançada. Nesse sentido, ao contrário dos nazistas, nada fizeram para modernizar e otimizar as matanças. Tratou-se ali de um genocídio manual e, por assim dizer, artesanal, que seguia o ritmo sazonal da atividade agrícola. Daí que a principal ferramenta letal tenha sido a mesma utilizada na lida diária: o facão. As metáforas empregadas pelos assassinos para descrever o massacre provêm desse universo semântico. Falando do que faziam aos tutsis, recorrem frequentemente ao terrível verbo “cortar”, como se falassem do corte do milho ou da bananeira. Associam a eliminação dos tutsis à purificação da terra mediante o extermínio de parasitas agrícolas. Contrastam a escassez eventual dos campos com a fartura da pilhagem dos pertences das vítimas, descrita como uma espécie de colheita extraordinária e milagrosa. “Para que cavar com a enxada, se colhíamos sem trabalhar?” – pergunta retoricamente um dos genocidas.
Todavia, apesar de seu caráter artesanal, o genocídio ruandês revelou-se morbidamente eficaz, bem mais até, em termos relativos, que os seus equivalentes nazista e comunista. É de fato espantoso que, em aproximadamente doze semanas, 800 mil pessoas tenham sido mortas, a grande maioria a golpes de facão, um modus operandi homicida que impede aquelas distância e impessoalidade propiciadas por armas de fogo e por outros instrumentos mortíferos como as câmaras de gás. Com efeito, além de agrícola, o horror ruandês foi um genocídio da proximidade, comunitário, interpessoal. Um genocídio, enfim, que, ao contrário do padrão observado nas guerras modernas, dava ocasião ao encontro físico direto, de forte carga dramática, entre algoz e vítima, cujos olhares se cruzavam antes do instante derradeiro. Como relembra um dos assassinos: “Os olhos de quem matamos são imortais, se nos encaram na hora fatal. Têm uma terrível cor preta. Impressionam mais do que o sangue correndo e do que os estertores das vítimas, mesmo num grande bruaá de morte. Para o matador, os olhos do morto, se eles os fitar, são a sua desgraça. São a condenação de quem mata”.
E, por fim, o que mais impressiona no genocídio ruandês, ainda tão recente, é o caráter absoluto de sua malignidade, que lhe confere um aspecto sobrenatural, quase como se Satanás em pessoa tivesse assumido o governo daquele pequeno país africano durante a primavera de 1994. Sob outra perspectiva, também aí o seu caráter rural se faz notar, pois o que se viu naqueles meses tem algo da indiferença das vastidões não povoadas, a indiferença da natureza selvagem diante das dores e angústias humanas, do vento frio que insiste em fustigar as mães que velam os filhos mortos. Com raríssimas exceções, praticamente não se viu em Ruanda aqueles episódios insólitos de trégua, solidariedade e compaixão entre inimigos, os quais, mesmo nos mais terríveis momentos de guerra e massacres, costumam acalantar o coração e resgatar um pouco da esperança na humanidade. Nada como a célebre trégua natalina nas trincheiras, que reconciliou brevemente alemães e ingleses durante a Primeira Guerra. Nada como o ministro de Vichy que evita a deportação de um colega judeu, com base em reminiscências dos tempos de escola. Nada como o gesto de alemães que, arriscando a própria vida, esconderam vizinhos judeus, a exemplo do que se passou com Anne Frank e sua família. Praticamente nada disso ocorreu em Ruanda, onde os tutsis foram abandonados por todos aqueles que, sabendo perfeitamente o que estava por vir, preferiram lavar as mãos: pela ONU, pela comunidade internacional, pelos brancos que ali viviam. Não tivemos nem mesmo algum sinal de cumplicidade materna das mulheres hutus para com suas vizinhas tutsis. Como descreve um dos entrevistados: “Em N’tarama, não conheço uma só hutu que tenha escondido discretamente uma criança tutsi para salvá-la do massacre da família. Nem mesmo um bebê de colo enrolado num pano ou um recém-nascido não reconhecível entre vizinhos, graças à sua tenra idade de criança que ainda mama. Nem uma só mulher trapaceou no sentido de guardar alguém em toda a extensão da colina, nem mesmo por um curto instante”.
Diante de exemplos e mais exemplos de tão palpável indiferença pelas vítimas, de uma negação tão absoluta do princípio do amor ao próximo, terminamos a leitura com um gosto amargo na boca. Sentimo-nos desamparados e perplexos diante do enigma do mal, daquilo que Hermann Broch (1886-1951) chamou certa vez de “a culpa dos inocentes” – a misteriosa cumplicidade no mal daqueles que não parecem ser maus. Num tempo em que a expressão “discurso de ódio” tem sido tão banalizada, usada de maneira frívola e oportunista, a leitura de Uma Temporada de Facões é, apesar de perturbadora, extremamente importante. Importante, com efeito, justo na medida em que é perturbadora. Como escreve a escritora americana Susan Sontag no prefácio da obra: “A questão, afinal, não é de julgamento. É de compreensão. Esforçar-se para entender o que aconteceu em Ruanda é uma tarefa dolorosa da qual não temos o direito de nos esquivar – faz parte de ser um adulto moral”.