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Hitler tinha um canário: notas sobre o sentimentalismo

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado (Foto: )

“O sentimental é simplesmente aquele que deseja desfrutar do luxo de uma emoção sem ter de pagar por ela… Lembre-se que todo sentimental é sempre um cínico e que o sentimentalismo é, na verdade, apenas o feriado bancário do cinismo” (Oscar Wilde).

“O kitsch faz com que duas lágrimas escorram em rápida sucessão. A primeira lágrima diz: como é bom ver crianças correndo pela grama! A segunda lágrima diz: como é bom comover-se, junto com toda a humanidade, por crianças correndo pela grama!” (Milan Kundera)

Hitler tinha um canário. Um belo dia, morreu-lhe o canário. E, qual uma criança pequena, Hitler chorou copiosamente. Sim, o genocida era também um notório sentimentalista. Genocida, aliás, na medida mesmo em que era sentimentalista, capaz de verter lágrimas de esguicho sobre o cadáver de um pássaro e, no instante seguinte, comandar a produção de milhões de cadáveres humanos. Theodore Dalrymple parece ter acertado o alvo ao afirmar: “O sentimentalismo é o progenitor, o avô e a parteira da brutalidade”.

A história do canário é verídica. Trata-se de uma entre muitas manifestações semelhantes de emocionalismo exacerbado por parte do Führer, testemunhadas por aqueles que lhe foram próximos. Como Benito Mussolini, por exemplo. Nos diários deixados pela última amante de Il Duce, a jovem e rica romana Claretta Petacci, registra-se um encontro entre ele e o líder nazista, ocorrido em 1938, logo após a capitulação de Neville Chamberlain, então primeiro-ministro britânico. “O Führer foi muito gentil” – observou Mussolini. “No fundo, é um velho sentimental. Quando me viu, tinha lágrimas nos olhos.”

No retrato psicológico que fez de Adolf Hitler, o psicólogo americano Walter C. Langer, contratado pelos Aliados em 1943 para tentar decifrar a mente do inimigo, descreve-o como um caso típico de dupla personalidade – Dr. Jekyll e Mr. Hyde. Segundo Langer, a outra faceta psíquica do monstro era a de “uma pessoa muito frágil, sentimental e indecisa, que tem pouquíssima energia e só quer ser entretida, amada e cuidada”. Na mesma linha, observa o jornalista Frederick A. Voigt: “Colaboradores próximos durante muitos anos afirmaram que Hitler era sempre assim: a menor dificuldade ou obstáculo podiam fazê-lo gritar de raiva ou cair em lágrimas”. Um desses colaboradores foi Hermann Rauschning, que relata: “Quase tudo pode subitamente inflamar sua fúria e ódio… Mas, da mesma forma, a transição da raiva para o sentimentalismo ou entusiasmo pode ser bastante repentina”. Hitler também era conhecido por seu encanto algo obsessivo por crianças (só as alemãs, evidentemente). Na época do Reich, a imprensa nazista não cansava de exibir fotos suas ao lado de bebês. Quando em Berchtesgaden, cidade alpina sede da fortaleza nazista conhecida como “Ninho da Águia”, costumava, ao cair da tarde, receber a visita de crianças da vizinhança, oferecendo-lhes doces, sorvetes e bolos. A princesa Olga da Iugoslávia relatou certa feita que, quando visitava Hitler em Berlim e surgia o assunto sobre crianças durante a conversa, os olhos do genocida enchiam-se de lágrimas.

Hitler não foi, é claro, o único criminoso sentimental. No campo comunista, tivemos exemplos célebres de retórica tão lírica quanto macabra, considerando o contexto ao qual servia. Desde o maquiavélico “Deixem que floresçam cem flores” de Mao Tsé-tung – proferido como uma espécie de prólogo às barbaridades cometidas durante a Revolução Cultural – até o piegas “Os poderosos podem matar uma, duas ou três rosas, mas jamais conseguirão deter a primavera”, atribuído a Che Guevara – o mais empenhado comandante dos paredões de fuzilamento da ditadura castrista –, revolucionários de esquerda jamais deixaram de proclamar em prosa e verso o seu amor pela humanidade, ao mesmo tempo em que, no mundo real, exerciam o seu visceral desprezo pelo próximo. A fala sobre a primavera, convém não esquecer, foi repetida por Luiz Inácio Lula da Silva no Sindicato dos Metalúrgicos no ABC paulista, pouco antes de ser preso por corrupção e lavagem de dinheiro. E costuma ser dita toda vez que um esquerdista está prestes a cometer algum crime ou violência política. É mesmo comovente.

Foi na França de meados do século 18 que o sentimentalismo fez a sua entrada triunfal na política. Não por acaso, a cultura sentimental do Iluminismo francês preparou o caminho para o Terror jacobino. Como mostra Simon Schama em Cidadãos: Uma Crônica da Revolução Francesa, entre os anos 1750 e 1780, e muito por conta das ideias que brotavam nos clubes e salões literários, os franceses experimentaram uma verdadeira revolução em sua sensibilidade moral e estética. Ali onde a França medieval valorizara o comedimento, e até mesmo certo estoicismo, a França iluminista passou a ter na sensibilidade – a capacidade intuitiva para o sentimento intenso – o seu valor cardinal. Ter un coeur sensible (um coração sensível) tornou-se pré-condição da moralidade. A manifestação irrefreada das emoções (de qualquer emoção) passou a ser não apenas aceita como valorizada.

Jean-Jacques Rousseau, é claro, foi o grande guru daquele culto à sensibilidade, uma verdadeira “revolução nos espíritos” (para usar a expressão de Albert Mathiez, historiador da Revolução Francesa). Seu livro A Nova Heloísa converteu-se em modelo para as cartas de amor da época, eivadas de melodrama. Numa de suas tantas missivas, Julie de Lespinasse, heroína do romance, consagra estilisticamente o Zeitgeist: “Mon ami, eu o amo como se deve amar, com excesso, loucura, arrebatamento e desespero”. Nesse novo mundo de expressividade à flor da pele, as lágrimas eram particularmente valorizadas como sinal de sublimidade, não de fraqueza. Eram tidas por uma espécie de transbordamento espontâneo da alma, um antídoto natural para o artificialismo das convenções sociais. Do ponto de vista ontogenético, eram como uma prova da criança interior existente na alma de cada adulto. Do ponto de vista filogenético, refletiam o bom selvagem clamando contra as amarras da civilização. Daí que, a exemplo de seu criador, os heróis e heroínas de Rousseau chorassem em abundância, soluçando e se derretendo ao mínimo sinal de estímulo.

Nas artes plásticas, o equivalente a Rousseau foi o pintor Jean-Baptiste Greuze, outro sucesso da época, cujas telas, pingando sentimentalismo, costumavam retratar os idílios e dramas da vida doméstica, um tema caro aos emergentes citoyens. Curiosamente, um dos quadros de Greuze chama-se A Menina Que Chora o Seu Canário Morto, hoje em exibição na Galeria Nacional Escocesa. Em dada ocasião, depois de contemplá-lo no Salão de 1765, o crítico de arte Charles Mathon de La Cour teve uma reação bem representativa das emoções que a obra do artista suscitava no público. Estimando em 11 anos a idade da criança, La Cour sugeriu ser aquela a fase do desenvolvimento em que “a natureza começa a amolecer o coração e prepará-lo para as impressões mais doces”. As lágrimas da menina pareceram-lhe ao mesmo tempo infantis e pré-adultas: “Vê-se que esteve chorando por um longo tempo até que, finalmente, se entregou à prostração e ao luto profundo. Seus cílios estão úmidos, suas pálpebras, avermelhadas, a boca, ainda contrita pelo choro. Mirando-lhe o colo, pode-se senti-lo estremecer com os soluços”. Não há quem não se emocionasse com o quadro, continuava o crítico, pois nele “podemos ver a natureza, partilhar do luto da menina e do desejo de a consolar. Por diversas vezes, passei horas inteiras a contemplá-lo, até o ponto de me embriagar de uma tristeza tão doce quanto terna”.

Outro a haver se encantado com a cena foi Diderot, que sobre ela escreveu: “Quando vemos esse quadro, dizemos: Delicioso! Quando paramos diante dele ou a ele voltamos, dizemos: Delicioso! Delicioso! Logo nos surpreendemos a encetar conversa com essa criança, consolando-a”. De maneira algo condescendente, imaginou o seu diálogo com a pequena enlutada nos seguintes termos: “Vamos, menina, abra o seu coração, diga-me a verdade. Foi mesmo a morte desse pássaro que a fez se recolher com tanta força e tristeza? Você baixa os olhos, não me responde. As memórias turvam sua visão. Quem é este ser que aparece em tua janela? Suas lágrimas estão prestes a correr. Eu não sou pai; não sou indiscreto, nem severo”. Em outro momento, comentando sobre a obra de Greuze em geral, o enciclopedista travou este outro diálogo imaginário (uma técnica expressiva recorrente em seus escritos), agora com o próprio artista: “Comova-me, assombre-me, faça-me tremer, chorar, soluçar e odiar”.

Esse estado de espírito hiperbólico, um emocionalismo exacerbado e autocomplacente, foi um dos elementos importantes para criar o caldo cultural em que, dali a alguns anos, as cabeças começariam a rolar em nome da sagrada virtude. Como explica Schama: “A drástica alteração cultural representada pelas primeiras erupções de sensibilidade romântica tem uma importância que vai muito além das artes. Ela significou a criação de um modo de falar e escrever que se tornaria a voz padrão da Revolução, partilhada tanto por suas vítimas quanto por seus mais implacáveis algozes. Os discursos de Mirabeau e Robespierre, bem como as cartas de Desmoulins e os festivais de civilidade republicana apelavam à alma, à suave humanidade, à Verdade, à Virtude, à Natureza e ao idílio da vida familiar. As virtudes proclamadas nos quadros de Greuze formaram a base moral daquilo que a Revolução entendia por virtude”.

Com efeito, o sentimentalismo generalizado foi o fermento da violência jacobina. Eis como Arthur Young, escritor e político britânico à época em visita a Paris, descreveu o ambiente do Palais Royal (um dos principais focos revolucionários) às vésperas da queda da Bastilha: “Dez mil pessoas estiveram ali durante o dia todo; a pressão é tão grande que uma maçã atirada do balcão sobre o tapete móvel de cabeças não atingiria o solo. Pode-se imaginar a condição de tais cabeças: elas são mais vazias de lastro do que quaisquer outras na França, as mais inflamadas por ideias especulativas, as mais excitáveis e excitadas. Nesse saco de gatos de políticos improvisados, ninguém sabe quem está falando; ninguém é responsável pelo que diz. Cada um está ali como num teatro, desconhecido entre desconhecidos, sujeito a impressões sensacionais e fortes emoções, presa do contágio das paixões em torno, imersa no redemoinho de frases de efeito, notícias fabricadas, rumores crescentes e outros exageros pelos quais os fanáticos instigam-se uns aos outros”.

A relação entre sentimentalismo e violência é muito bem captada por Dalrymple, que aponta a perda da clareza dos limites entre e o permissível e o não permissível como uma das consequências da adoção geral da visão romântica e sentimental da existência. O psiquiatra inglês enfatiza o caráter exibicionista do sentimental, que usa as próprias emoções exacerbadas como poder de pressão sobre os outros, intimando-os a uma concordância forçada e, em caso negativo, submetendo-os a uma condenação moral implacável. Diz Dalrymple: “Em um estado de sentimentalismo, certamente do tipo vivido em público, a pessoa é mais comovida pelo fato de ser comovida do que por aquilo que supostamente a está comovendo. Além disso, está interessada em que todos vejam o quão comovida está”. E conclui: “O sentimentalismo é a expressão da emoção sem julgamento. Talvez ele seja pior do que isso: é a expressão da emoção sem um reconhecimen­to de que o julgamento deveria fazer parte de como devemos reagir ao que vemos e ouvimos. É a manifestação de um desejo pela ab-rogação de uma condição existencial da vida humana, a saber, a necessidade de exercer o juízo sempre e indefinidamente. O sentimentalismo é, portanto, infantil (porque são as crianças que vivem em um mundo tão facilmente dicotomizável) e redutor de nossa humanidade”.

O sentimentalismo é, portanto, a manifestação de emoções desordenadas e corrompidas, que conduzem à autopermissividade, à húbris, à irresponsabilidade e, como corolário, à brutalidade – manifesta quer direta, quer indiretamente. Olhando para o debate público brasileiro, é fácil constatar o quanto de sentimentalismo existe na personalidade de nossos intelectuais, jornalistas e autoridades, que não se vexam de exibir em público a sua constrangedora infantilidade moral, como quando o sociólogo Emir Sader, por ocasião da condução coercitiva de Lula, choramingou em seu perfil no Twitter, emulando Mário Quintana: “Se a direita acreditava que terminaria com um mito, só multiplicou o mito do Lula. Eles passam e o Lula passarinho”. Como sói acontecer, a realidade atropelou as ilusões do adolescente tardio. Lula, de fato, terminou como passarinho… só que na gaiola.

Mas à parte essas manifestações tragicômicas do que poderíamos chamar de sentimentalismo lulopetista – hoje quase um novo gênero literário, tipicamente brasileiro –, há casos bem mais graves desse senso moral corrompido, autoproclamado “progressista”, com consequências sociais altamente nocivas. Eles têm sido recorrentes, por exemplo, em declarações públicas de ministros do Supremo Tribunal Federal, titulares do temerário poder de consagrar a própria visão sentimental de mundo em normas constitucionais. Quando vemos uma Carmem Lúcia dizendo que “a única força legitimada a invadir uma universidade é a das ideias livres e plurais”, estamos diante do mais açucarado sentimentalismo. Eis uma daquelas frases que, nas palavras de Dalrymple, “transmite um calorzinho ao suscetível, assim como um gole de uísque provoca um quentinho no esôfago”. No entanto, esse linguajar kitsch, aparentemente inócuo, usado por uma senhora de semblante morfético, revela toda a sua perversidade quando lembramos que serviu a uma decisão liminar destinada a impedir que a Justiça Eleitoral coibisse propaganda partidária irregular favorável à esquerda dentro de universidades públicas. Ao longo dos últimos anos, a universidade foi sequestrada pela extrema-esquerda, que utiliza métodos stalinistas e maoístas para cercear violentamente a liberdade de expressão de docentes e discentes não alinhados. E, durante todo esse tempo, a douta apologista da pluralidade manteve-se em silêncio. Como escrevi no artigo “A guerra pela universidade”, publicado aqui na Gazeta há duas semanas, agir como Carmen Lúcia é o mesmo que “se omitir por anos a fio diante das agressões cometidas por uma pessoa mais forte contra uma pessoa mais fraca e, de repente, no justo instante em que esta última reage, começar a pontificar, em termos tão grandiloquentes quanto genéricos, sobre a importância do princípio da não violência”. Portanto, a pieguice da juíza não é inofensiva, não se reduzindo a uma pitoresca curiosidade de província (o que também não deixa de ser). Na verdade, ela mascara o ato infame de, sob o pretexto de resguardar a pluralidade, chancelar a violência política unilateral dentro do ambiente acadêmico.

Mas talvez o mais perigoso sentimentalista do nosso STF, um homem que parece ter sido teletransportado diretamente da França do século 18, e que certamente se desmancharia em lágrimas diante dos quadros de Greuze (e não menos diante das cabeças cortadas dos “conservadores”), é Luís Roberto Barroso. Há poucos dias, durante o 1.º Congresso Internacional de Direito e Gênero promovido pela Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, o pretenso guardião da Constituição, sempre tão cheio de ideiazinhas próprias, desfiou a sua tradicional arenga abortista, manifestando-se nos seguintes termos: “A mulher não é um útero a serviço da sociedade. Se os homens engravidassem, esse problema já teria sido resolvido”. Ao tomar conhecimento dessa fala por meio da imprensa, tentei lembrar onde já vira argumentação parecida e, depois de um breve esforço da memória, finalmente consegui. Estava lá, num vídeo que circulou nas redes sociais há alguns anos, mostrando a performance da banda Putinhas Aborteiras, formada por jovens militantes feministas. Sobre a melodia de For He’s a Jolly Good Fellow (“Ele é um bom companheiro”), cantavam as moçoilas a seguinte letra: “Se o Papa fosse mulher. Se o Papa fosse mulher. Se o Papa fosse mulher (pausa dramática)… O aborto seria legal”.

Dalrymple tem razão. O sentimentalismo é mesmo a expressão evidente de uma ética infantil, graciosa em crianças autênticas, decerto, mas nauseabunda em crianças crescidas e com barba na cara. À moda de Hitler, que chorou feito criança diante do canário morto (como numa paródia grotesca da tela de Greuze), Barroso expressa-se tal qual uma adolescente feminista sobre um tema tão sério quanto o aborto. Com seus modos afetados, e seu já notório exibicionismo moral, o ministro apela ao simbolismo da emancipação feminina como forma de, num ato de prestidigitação retórica, ocultar a realidade brutal e concreta do ato de abortar – o sacrifício covarde de uma vida humana indefesa. Para esse típico representante da noblesse de robe, a mulher não pode ser convertida em “um útero a serviço da sociedade” (reparem que o feto desaparece da equação), mas o embrião pode ser convertido num “amontoado de células” (segundo o jargão abortista) a serviço do farisaísmo progressista. Citando Dalrymple mais uma vez, e para encerrar: “O sentimentalismo foi o precursor e o cúmplice da brutalidade sempre que as políticas su­geridas por ele foram postas em prática. O culto do sentimento destrói a capacidade de pensar, e até a consciência de que é necessário pensar. Pascal tinha toda a razão quando disse: Travaillons donc à bien penser. Voilá le príncipe de la morale. Esforcemo-nos, portanto, para pensar bem. Eis o princípio da moral”.

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