Em 1984, no famoso apêndice em que são descritos os princípios da novilíngua totalitária imposta pelo Ingsoc em Oceania, George Orwell escreve: “Para além da supressão de palavras definitivamente heréticas, a redução do vocabulário era tida por um fim em si mesmo, e nem uma palavra supérflua devia sobreviver. A novilíngua foi concebida não para ampliar, mas para diminuir o alcance do pensamento, e esse propósito era indiretamente alcançado mediante a redução do vocabulário a um mínimo necessário”.
A descrição cai como uma luva para caracterizar a linguagem com que as forças autoproclamadas “progressistas” no Ocidente têm se referido à violência religiosa praticada por muçulmanos contra cristãos mundo afora. As reações de políticos, intelectuais e jornalistas de esquerda aos terríveis atentados terroristas no Sri Lanka levaram essa situação orwelliana ao paroxismo, mostrando que o ódio homicida dos jihadistas é perturbadoramente complementado por uma hostilidade anticristã latente (mas cada vez menos envergonhada) por parte daqueles setores.
Unidos pelo ódio à religião que inspirou os valores e instituições das democracias ocidentais, radicais islâmicos e radicais de esquerda, parceiros excêntricos, celebram aquilo que David Horowitz, em livro sobre o tema, chamou de “aliança profana”. A diferença é apenas de método. Enquanto os primeiros movem uma guerra ostensiva e sangrenta contra o Cristianismo (como atestam os recentes episódios de ataques a igrejas cristãs em várias regiões do planeta), os segundos se lançam numa espécie de guerra fria, cuja agenda principal consiste justamente em negar a existência daquela. Em resumo: uns agridem com violência extrema, os outros, com desprezo e escárnio, ferramentas habilmente manuseadas para que, em episódios de ódio religioso tais como o que se viu no Sri Lanka, algozes (muçulmanos) e vítimas (cristãos) nunca possam ser claramente apontados.
No meu livro A Corrupção da Inteligência, sugeri que uma das características centrais do discurso politicamente correto – que é uma versão difusa da doutrina do materialismo histórico – é uma perversão ética segundo a qual a história é dividida entre oprimidos e opressores quintessenciais, compreendidos como categorias estanques. Hoje, a noção marxista de uma oposição fundamental foi mantida, mas as categorias em luta (outrora classificadas segundo a sua posição na sociedade de classes: proletários ou burgueses) foram substituídas e multiplicadas, tendo as novas clivagens outros critérios para além dos que estabelecia a estrutura produtiva: de raça, sexo, gênero, religião etc. Assim, uma pessoa não é julgada vítima ou algoz a partir de uma interação humana concreta e observável, mas de maneira apriorística e fixa, conforme o seu pertencimento à “classe” das vítimas ou à “classe” dos algozes. Numa interação entre negros e brancos, por exemplo, os primeiros ocuparão sempre a posição de vítimas de racismo, ainda que cometam racismo contra os segundos. O mesmo se passa na relação entre muçulmanos e cristãos.
Isso se reflete claramente na linguagem da esquerda contemporânea, seja nas matérias jornalísticas, nos artigos de opinião ou nos discursos políticos. Quando, por exemplo, um cristão é vítima do ódio de um muçulmano (o que acontece na maior parte dos casos), opta-se pelo genérico em detrimento do específico, e a condição particular da vítima, ou seja, a sua fé religiosa, não é mencionada. Quando as vítimas (reais ou imaginárias) gozam de pedigree ideológico junto à imprensa, são logo especificadas, bem como os seus supostos algozes. Quando, ao contrário, sua condição de vítima não serve à narrativa progressista, trata-se logo de dissolvê-las numa violência genérica e impessoal.
Não é por acaso que nunca tenha surgido na linguagem jornalística um termo específico para caracterizar a perseguição religiosa sofrida por cristãos ao redor do mundo, algo equivalente a “islamofobia”. Inexistente no vocabulário midiático, tudo se passa como se esse tipo de perseguição (que poderíamos glosar como cristianofobia) não existisse no mundo real, ao passo que, de tão repetida por uma classe falante seletivamente escandalizada, a islamofobia adquire a aparência de calamidade. Mas a realidade é precisamente o inverso do que apregoa a novilíngua politicamente correta: no mundo real, a perseguição islâmica contra cristãos é um fenômeno palpável e epidêmico, que tem produzido uma verdadeira carnificina, enquanto a islamofobia é pouco mais que uma assombração retórica. Nas últimas décadas, por exemplo, os registros de violência claramente islamofóbica são irrisórios se comparados aos massacres cometidos por islâmicos contra cristãos e judeus ao redor do planeta.
Uma boa ilustração da guerra fria progressista contra o Cristianismo forneceram dois expoentes da esquerda americana, Barack Obama e Hillary Clinton, ao condenarem os ataques no Sri Lanka de maneira protocolar. Como sempre, os dois discípulos de Saul Alinsky fizeram questão de omitir qualquer menção ao radicalismo islâmico em seus pronunciamentos. De modo ainda mais desavergonhado, não se dignaram nem mesmo a usar a palavra “cristãos” para qualificar as vítimas, que, em vez disso, foram descritas como “adoradores da Páscoa”, um termo que passou a ser usado por vários políticos do partido Democrata, evidenciando que a escolha vocabular foi uma atitude política planejada. Atitude muito diferente tiveram os dois radicais de esquerda por ocasião do massacre nas mesquitas da Nova Zelândia, quando manifestaram sua solidariedade às vítimas identificando-as expressamente como membros da “comunidade muçulmana”, e descrevendo-as como vítimas de “islamofobia”.
Seguindo a mesma linha, o Washington Post (hoje pouco mais que um panfleto de esquerda) publicou uma matéria que aproveitava o atentado no Sri Lanka para expressar sua preocupação… com as vítimas? Não, com o fortalecimento da retórica “anti-islâmica” da extrema-direita americana e europeia. “Para alguns” – lê-se na matéria dos jornalistas Adam Taylor e Rick Noack –, “[o atentado] foi uma prova definitiva de que os cristãos estão sob ataque em várias partes do mundo”. Para alguns… Pouco importa que, só na França, mais de 800 igrejas tenham sido vandalizadas no ano passado, e algumas dezenas neste ano. Que, em março de 2010, 528 cristãos tenham sido mortos por muçulmanos a golpes de facão na Nigéria. Que, em 2011, milhares de cristãos tenham sido chacinados na Costa do Marfim. Que, em 2012, igrejas cristãs tenham sido incendiadas no Sudão do Sul e novamente na Nigéria, com as vítimas sendo queimadas vivas. Que, em 2013, muçulmanos tenham atirado contra cristãos num shopping no Quênia e assim por diante. Para o jornal de Jeff Bezos, a sistemática perseguição islâmica aos cristãos (cujos números alarmantes podem ser consultados, por exemplo, no site francês L’Observatoire de la Christianophobie) não passa de uma teoria da conspiração de extremistas de direita islamofóbicos…
Percebe-se claramente que, no vocabulário progressista, há uma norma tácita proibindo que os cristãos sejam representados na posição de paciente de intolerância. Segundo uma consagrada narrativa segundo a qual essa religião é o pecado original do Ocidente, o Cristianismo só pode ser autor de ódio religioso, jamais vítima. E se, por acaso, a realidade ameaça perturbar a lógica dessa agenda político-ideológica, basta recorrer à novilíngua e suprimir a própria palavra “cristãos” do debate público, reservando-a cuidadosamente para alguma circunstância futura em que os cristãos possam ser situados na posição de agressores, antes que na de agredidos. Como se vê, para além da ação dos terroristas stricto sensu, o Ocidente vê-se desarmado e moralmente enfraquecido por um enxame de “terroristas intelectuais” (na expressão de Jean Sévillia), que terminam por assumir a condição de cúmplices morais dos primeiros. Hoje, os jihadistas islâmicos apenas colhem os frutos podres do envenenamento da alma ocidental, que tem no anticristianismo a sua pedra de toque.