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A terra desolada da iconoclastia: sobre os projetos de reconstrução da Notre-Dame

Foto: Studio NAB/Reprodução (Foto: )

“Ele tem tal beleza em sua vida que me faz feio” (Iago sobre Cássio em: Shakespeare, Otelo, Ato V, Cena 1)

“Todas as épocas são iguais perante Deus” (Leopold von Ranke, Do Progresso na História)

Notre-Dame ainda arde. O fogo invisível que ora a consome foi ateado pela ideologia vanguardista, manifesta de modo alarmante nos projetos de reconstrução da torre e do teto da catedral. Anunciados logo que o primeiro ministro francês Édouard Philippe lançou uma competição internacional para arquitetos interessados na missão, os projetos só podem ter sido concebidos no intuito de concluir o trabalho de destruição que as chamas originais não lograram consumar. Reunidos, eles perfazem aquilo que não seria nenhum exagero chamar de arquitetura terrorista, porque, num certo plano, os arquitetos que os conceberam não se distinguem, por exemplo, dos bárbaros do Estado Islâmico que destruíram o templo de Baal-Shamin, na cidade antiga de Palmira (Síria). Partindo de motivações fundamentais distintas – aqui, a de um ódio metafísico; lá, a de uma criatividade autodestrutiva –, uns e outros se encontram na terra desolada da iconoclastia.

Segundo matéria do Estadão, os candidatos à reconstrução (ou, deveríamos dizer, desconstrução) da catedral propõem abertamente conferir-lhe uma aparência mais “ligada ao século 21”, substituindo os elementos góticos originais por algumas pitorescas novidadezinhas arquitetônicas, daquelas de provocar furor nos decotes dos frequentadores de vernissages. Naquele espírito de ironia depressiva típico da cultura hipster, um dos arquitetos, o vanguardista francês Mathieu Lehanneur, não se vexa em imaginar uma torre em forma de labareda, a ser confeccionada em fibra de carbono e folha de ouro, quase como um carro alegórico em desfile de celebração ao incêndio. A turma do escritório ABH Architectes, por sua vez, projeta no espaço uma grande agulha em vidro e cristal, ao estilo novo-rico da cafoníssima arquitetura de Dubai. Um terceiro projeto, do arquiteto cipriota Davis Panayiotou, vislumbra uma torre futurista e alienígena, que, se deveras bizarra quando enxertada na paisagem parisiense, decerto não faria feio no skyline da cidade dos Jetsons.

A ideia de que um monumento religioso e arquitetônico com sete séculos de existência deva se submeter aos parâmetros do século 21 (antes que o contrário) é uma ilustração perfeita da doença espiritual modernista, que consiste basicamente naquilo que, em 1974, o sociólogo americano Jib Fowles batizou de cronocentrismo – “a crença de que a nossa própria época é suprema, de que, perto dela, todas as outras empalidecem” –, e que, bem antes dele, T. S. Eliot já caracterizara como um provincianismo temporal (expressão que também o nosso poeta Antônio Cícero gostava de usar). “Em nossa época, começa a existir um novo tipo de provincianismo que requer um novo nome” – diz Eliot. “É um provincianismo não de espaço, mas de tempo… um provincianismo em que o mundo é propriedade exclusivamente dos vivos, um território onde os mortos não têm vez”.

Manifesta em tantas expressões da mentalidade modernista, como na arquitetura totalitária de um Le Corbusier – “Versalhes e a época clássica não são senão decadência!” –, ou no presentismo filosófico de um Jean-Paul Sartre – “queremos que o escritor abrace estreitamente a sua época” –, aquela atitude arrogante para com o passado assinala uma incapacidade, por parte das vanguardas culturais do Ocidente, de contemplar a história humana sub specie aeternitatis. Seus integrantes, de hábito tão cosmopolitas no eixo espacial, revelam-se, ao contrário, uns perfeitos caipiras no eixo temporal. Picando fumo na varanda de seu sitiozinho histórico, contemplam os homens e feitos de outras épocas com ar desconfiado.

São desse tipo os candidatos a desconstrutores da Notre-Dame, que, enclausurados em seu próprio tempo – um tempo de culto à iconoclastia pela iconoclastia –, não parecem sequer vislumbrar a importância dos conceitos de permanência e transcendência, pretendendo aprisionar sete séculos de história na pequenez de seus portfólios. Enclausurados, ademais, em seu próprio ego, e entregues a efusões de subjetividade e solipsismo, não têm como respeitar o sentido original para o qual apontava a construção da catedral, sentido que, até então, todos os novos aportes estruturais ao edifício (a exemplo da “flecha”, a grande torre construída no século 19, tombada no incêndio de agora) haviam respeitado. Pois da magnífica e transgeracional arquitetura de Notre-Dame seria possível dizer aquilo que da arte poética também disse T. S. Eliot, a saber: que ela não consiste numa expressão das emoções do poeta, mas, justo o contrário, numa fuga da personalidade. No caso, uma fuga em direção a Deus.

De fato, concebida originalmente como um monumento a Deus, e permanecendo ao longo dos séculos como um símbolo de reverência ao Eterno, foi só agora que, sob a cumplicidade de autoridades políticas desenraizadas como Emmanuel Macron, Notre Dame tornou-se vítima de artistas contemporâneos dispostos a inverter o padrão obedecido por seus antepassados e a imprimir na catedral os sinais de sua personalidade ególatra, ao invés de, como aqueles, se deixar dissolver na grandiosidade atemporal da edificação. Em lugar de dedicar sua potência criativa a reverenciar o transcendente (ou, no mínimo, a posteridade), fizeram de Notre-Dame uma igrejinha particular de culto ao próprio ego, num gesto evidente de autodivinização.

Tudo isso nos faz lembrar as reflexões do filósofo Roger Scruton sobre o tema. Em seu livro Beleza, a arte contemporânea é descrita como um culto vulgar à transgressão, além de uma veemente recusa do belo. “O repúdio da beleza ganha força com uma certa visão da arte moderna e da sua história” – diz o filósofo. “Há um desejo de estragar a beleza através de atos de iconoclastia estética… Isto porque a beleza é exigente: é um chamamento para renunciarmos ao nosso narcisismo e olharmos o mundo com reverência”. Daí que a contemplação da beleza de Notre-Dame seja intolerável a arquitetos narcisistas, que, portanto, tudo fazem para estragá-la. Não, para essas almas apequenadas, a belíssima catedral histórica já não pode ser – como sempre foi – uma via para o Eterno. Ela agora não passa de um espelho a responder afirmativamente à pergunta de uma corte de rainhas más: “Espelho, espelho meu, há no mundo alguém mais criativo do que eu?”.

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