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Desagradando gregos e troianos

Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo (Foto: )

O presidente Jair Bolsonaro finalmente assinou o documento que modifica o Decreto 5.123 de 1.o de julho de 2004, que regulamenta o registro, a posse e a comercialização de armas de fogo. A primeira data divulgada para a assinatura do novo decreto foi sexta-feira passada, dia 11 de janeiro. Porém, após a péssima repercussão de uma reportagem do SBT – na qual diversos trechos do texto foram mostrados – entre muitos dos apoiadores de Bolsonaro nas redes sociais, a assinatura foi adiada para hoje.

Infelizmente, para decepção geral e costumeira da nação, o governo conseguiu desagradar a todos. De um lado, os desarmamentistas receberam as pouquíssimas concessões ao armamento de civis como se esperava que recebessem: sinal de tempos vindouros sombrios em que mais armas trarão ainda mais violência. Do outro, os que lutam pelo direito de defesa própria com armas de fogo viram suas demandas quase que inteiramente ignoradas, numa quebra clara das promessas de campanha do presidente nessa área. Que fique claro: os desarmamentistas fariam um escarcéu com qualquer texto que não tornasse ainda mais difícil a posse e o porte de armas. O golpe duro de assimilar foi justamente contra os que tinham grandes expectativas e foram frustrados com um texto extremamente tímido (um eufemismo para covarde, neste caso), que pouco altera o processo complicado, trabalhoso e dispendioso que é a obtenção da licença para a compra de uma arma de fogo.

Analisemos o texto do novo decreto. Logo de início, aquele cabeçalho padrão, que não pede nenhuma análise especial:

Altera o Decreto nº 5.123, de 1º de julho de 2004, que regulamenta a Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas – Sinarm e define crimes.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, caput, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto na Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003,

DECRETA:

Art. 1.º O Decreto n.º 5.123, de 1.º de julho de 2004, passa a vigorar com as seguintes alterações:

Aqui começam as alterações ao texto vigente, e começam muito bem (estou sendo irônico, ok?):

“Art. 12. ……………………………………………………………………………………….. ………………………………………………………………………………………………………

VIII – na hipótese de residência habitada também por criança, adolescente ou pessoa com deficiência mental, apresentar declaração de que a sua residência possui cofre ou local seguro com tranca para armazenamento.

Como se pode ver, foi introduzido um inciso no artigo 12 (inciso VIII) inexistente nas versões anteriores. O item obriga o cidadão que deseja ter uma arma em casa e que more com seus filhos menores de idade a declarar a posse de um cofre ou local com tranca para o armazenamento das armas. Ora, é fato que armas que ficam trancadas não servem para defesa própria, pois uma das premissas de se proteger contra um ataque surpresa (como costumam ser todos os ataques criminosos) é ter fácil acesso a uma arma municiada. Ainda que o novo item só obrigue o sujeito a fazer uma declaração, constitui mais um ponto de interferência do Estado na vida do cidadão, que terá apenas duas opções: providenciar um cofre/local seguro com tranca, ou mentir em um documento oficial ao governo. A agravante desse item está no paternalismo ridículo nele embutido, como se acidentes com armas de fogo fossem uma das maiores causas de morte entre crianças e adolescentes. As estatísticas oficiais do nosso sistema de saúde mostram que produtos de limpeza, escadas, piscinas e outros itens tão comuns nas casas brasileiras matam muito mais crianças que acidentes com armas, e não existe lei que obrigue os pais a manter um armário com tranca para seu arsenal de cândida, detergente e desinfetante.

Sigamos em frente:

    O texto anterior dizia:

      Aqui temos uma evolução mínima. Primeiramente, eliminou-se do processo a regulamentação extra que vinha do Ministério da Justiça. Além disso, ao dizer que “presume-se a veracidade dos fatos e das circunstâncias afirmadas na declaração de efetiva necessidade”, o texto concede à Polícia Federal um tipo de carta branca para aprovar pedidos. No entanto – e esse ponto é o mais importante –, essa alteração não remove a enorme excrescência que é o inciso I, o qual condiciona a concessão da licença a uma declaração de efetiva necessidade. A posse de armas de fogo, por ser essencial ao direito de defesa do cidadão, jamais poderia ser tratada como um privilégio; deveria ser estabelecida como direito sem contrapartida de apresentação de necessidade. Afinal de contas, a necessidade está implícita no próprio direito de defesa. Bolsonaro deveria ter simplesmente extinto o inciso I. Do jeito que ficou, continua dando margem a interpretações discricionárias.

      O novo decreto adiciona quatro parágrafos (§ 7.º, § 8.º, § 9.º e § 10.º) ao artigo 12:

        A novidade neste parágrafo é o estabelecimento de cidadãos de segunda classe no tocante ao direito de possuir armas. Além de privilégios já estabelecidos em versões anteriores para agentes públicos e militares, o novo texto adiciona os residentes da zona rural e os de áreas urbanas violentas à lista de cidadãos de primeira classe. Ou seja, o que antes era uma diferenciação por competência passou a ser também uma diferenciação por local de moradia. Nesse ponto, sou radicalmente libertário: acho um absurdo que o Estado garanta um direito a certas pessoas apenas por sua localização geográfica, e considero esse novo parágrafo um retrocesso. E, antes que alguém comente que o Atlas da Violência atual coloca todos os estados do Brasil no patamar acima de dez homicídios por 100 mil habitantes, convém lembrar que essa realidade pode mudar rapidamente, especialmente para os paulistas, que estão num patamar limítrofe e podem ser excluídos da lista de privilegiados a qualquer momento.

          Mais um retrocesso: em vez de seis armas por cidadão, que já era um limite sem sentido, temos agora quatro. Não fosse toda a gritaria dos últimos três dias, seriam apenas duas.

            Aqui temos a armadilha montada e pronta para disparar: basta que algum burocrata ache uma vírgula falsa na sua declaração de efetiva necessidade para que seu registro seja cancelado. Como eu disse anteriormente, a única solução realmente aceitável seria a extinção do inciso I. Qualquer outro remendo sempre deixará uma quantidade suficiente de poder discricionário nas mãos de algum agente público.

              Esse parágrafo é para os incautos que acharam que a história de cofre tinha acabado. Se o cidadão não tiver a porcaria do cofre ou do local trancado para manter sua arma e, por um azar, for descoberto, corre o risco de passar de um a dois anos na prisão e ainda pagar multa.

              Terminado o artigo 12, sigamos para o 15, que no texto vigente especifica os dados mínimos que devem constar no registro da arma de fogo. A alteração consiste na adição de um parágrafo de caráter técnico, que não melhora nem piora a vida de ninguém que não seja da Abin:

              Art. 15. …………………………………………………………………………………………
              Parágrafo único. Os dados de que tratam o inciso I e a alínea “b” do inciso II do caput serão substituídos pelo número de matrícula funcional, na hipótese em que o cadastro no SIGMA ou no SINARM estiver relacionado com armas de fogo pertencentes a integrantes da Agência Brasileira de Inteligência.”
               

              Logo em seguida, no artigo 16, finalmente uma mudança para melhor.

              “Art. 16. …………………………………………………………………………………………
              § 2.º Os requisitos de que tratam os incisos IV, V, VI e VII do caput do art. 12 deverão ser comprovados, periodicamente, a cada dez anos, junto à Polícia Federal, para fins de renovação do Certificado de Registro.

              A nova redação do parágrafo 2.º diminui o ônus dos donos de armas pela metade: em vez de terem de apresentar toda a documentação a cada cinco anos, terão de fazê-lo a cada dez. Ainda é infinitamente mais que nos Estados Unidos, por exemplo, onde você nunca mais submete documento algum depois de comprar a arma, mas já é alguma coisa.

              A mudança a seguir, no artigo 18, complementa a do artigo 16, consolidando o prazo de dez anos para renovação de registro. O texto anterior misturava prazos de três, cinco e dez anos no processo de renovação, tornando a vida do cidadão mais complicada. Veja como ficou:

              Art. 18. …………………………………………………………………………………………
              ………………………………………………………………………………………………………
              § 3.º Os requisitos de que tratam os incisos IV, V, VI e VII do caput do art. 12 deverão ser comprovados, periodicamente, a cada dez anos, junto ao Comando do Exército, para fins de renovação do Certificado de Registro.
              ………………………………………………………………………………………………………
              § 5º Os dados de que tratam o inciso I e a alínea “b” do inciso II do § 2.º serão substituídos pelo número de matrícula funcional, na hipótese em que o cadastro no SIGMA ou no SINARM estiver relacionado com armas de fogo pertencentes a integrantes da Agência Brasileira de Inteligência.”

              O parágrafo 5.º foi adicionado para manter a coerência com o parágrafo único adicionado ao artigo 15.

              Vamos ao penúltimo artigo modificado, o artigo 30. A modificação aqui consiste na adição de um parágrafo:

              Art. 30. …………………………………………………………………………………………
              § 4.º As entidades de tiro desportivo e as empresas de instrução de tiro poderão fornecer a seus associados e clientes, desde que obtida autorização específica e obedecidas as condições e requisitos estabelecidos em ato do Comando do Exército, munição recarregada para uso exclusivo nas dependências da instituição em provas, cursos e treinamento.” 

              Temos aqui a autorização para que entidades de tiro desportivo forneçam munição recarregada para uso em suas dependências. Levando em consideração o custo e a dificuldade de se obter munição no Brasil, esse é um ponto a ser comemorado. Fica somente a dúvida sobre a facilidade com que o Comando do Exército autorizará essas entidades a fazer uso desta nova regra.

              Finalmente, foi adicionado um artigo, o 67-C, que diz:

              Art. 67-C. Quaisquer cadastros constantes do SIGMA ou do SINARM, na hipótese em que estiverem relacionados com integrantes da Agência Brasileira de Inteligência, deverão possuir exclusivamente o número de matrícula funcional como dado de qualificação pessoal, incluídos os relativos à aquisição e à venda de armamento e à comunicação de extravio, furto ou roubo de arma de fogo ou seus documentos.”
              Art. 2.º Os Certificados de Registro de Arma de Fogo expedidos antes da data de publicação deste Decreto ficam automaticamente renovados pelo prazo a que se refere o § 2.º do art. 16 do Decreto nº 5.123, de 2004.
              Art. 3.º Para fins do disposto no inciso V do caput do art. 6.º da Lei n.º 10.826, de 22 de dezembro de 2003, consideram-se agentes operacionais da Agência Brasileira de Inteligência os servidores e os empregados públicos vinculados àquela Agência.
              Art. 4.º Fica revogado o § 2.º-A do art. 16 do Decreto n.º 5.123, de 2004.
              Art. 5.º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

              Esse artigo apenas versa sobre a questão dos cadastros pertencentes a agentes da ABIN e revoga um parágrafo que perdeu o sentido com a implementação do novo texto.

              Resumindo: toda a expectativa que tínhamos – eu me incluo nessa, pois, mesmo não sendo um grande entusiasta do governo Bolsonaro, achei que ele fosse mexer muito mais na legislação sobre armas de fogo – foi tremendamente frustrada com esse decreto. Considero um desperdício de capital político assinar um texto que mudará muito pouco a vida de quem deseja comprar uma arma de fogo. Se era para fazer um decreto “para inglês ver”, teria sido melhor investir em uma solução muito mais abrangente e fundamentada no Legislativo. Com o perdão do trocadilho, esse decreto foi um tiro no pé.

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