Dos índios que aqui estavam e dos portugueses que para cá vieram ganhamos todos os nomes, da Curitiba que também é a Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, até o piá, que de tão nosso deixou de ser tupi para ser típico curitibanês. Hoje significa menino; na origem, coração, que era a forma como as mães tupis chamavam seus filhos, meninos e meninas.
Cidade, aliás, que nasceu com a vocação de coração. Raimundo Negrão Torres, em seu livro Paraná, Encruzilhada de Caminhos, afirmou que os campos de Curitiba “eram o maior entroncamernto de caminhos coloniais do continente americano”. Não havia trilha indígena ou caminho aberto por tropeiros que por aqui não passasse. Como as veias e artérias no corpo humano que encontram no coração a sua origem e fim.
Dos primeiros, senão o inaugural, seguimos trilhando o Caminho do Itupava que ligava o litoral com serra acima e chegava em Curitiba pelo que hoje é a rua Itupava com sua prainha de jovens, descendo pela Conselheiro Araújo e terminando entre o Teatro Guaíra e o Círculo Militar, vizinhos da praça Tiradentes, nosso marco zero. Desses tropeiros que por aqui montavam acampamento e transformaram a região em entreposto comercial herdamos o sotaque escandido do nosso “leitE quentE”.
No século 19, começaram a chegar os imigrantes que foram desenhando a cidade e nos tornando um pouco de todos. Alemães primeiro, habitando a área mais central e urbanizada. Daí vieram os poloneses ocupando a região que vai do Santa Cândida ao Abranches, passando pelo Orleans e Pilarzinho, seguidos dos italianos que chamaram Santa Felicidade, seu reduto, em homenagem à sra. Felicidade Borges, de cuja família compraram aquelas terras.
Os ucranianos vieram em massa no fim do século 19 se assentando ali para os lados da avenida Cândido Hartmann, formando o Bigorrilho, enquanto os japoneses, chegados no início do século 20, ocuparam mais o Uberaba e Campo Comprido. Vieram ainda os sírios e libaneses com forte vocação comercial, viajando em lombos de burro para vender de porta em porta até abrirem suas lojas na área central, onde continuam a marcar presença.
Assim a cidade foi ganhando corpo, amadurecendo, sendo urbanizada, mas jamais sem planejamento. Se em 1857 somente duas ruas se cortavam em ângulo reto, a Doutor Muricy com a Marechal Deodoro, o planejamento urbano foi aos poucos endireitando nossas veredas, como com o Plano Agache, na década de 1940, sendo implementado criando o sistema radial de vias ao redor do centro tal como conhecemos hoje, com as grandes avenidas Visconde de Guarapuava, Sete de Setembro, Marechal Floriano Peixoto, dentre outras.
Depois, na década de 1970, novo Plano Diretor começou a dar a forma com que conhecemos a Curitiba de hoje, com as canaletas de ônibus, o centro histórico e a criação da CIC. Na década de 1990 nos tornamos a “capital ecológica”, das melhores cidades para se viver no mundo, segundo os entendidos em estragar as melhores cidades para se viver no mundo, o que nos fez entrar no século 21 com os problemas de toda grande metrópole, exigindo revisões constantes do plano diretor para não perdermos a forma (e a identidade) que criamos.
Hoje, se o anel central, bastante expandido, ainda mantém a forma planejada na década de 1970, as franjas da cidade vão dando outra cara a Curitiba. Se o primeiro ciclo de riqueza que tivemos, com os engenhos de erva-mate e seus “barões”, legou-nos as mansões construídas no Alto da Glória e também no Batel, algumas ainda existentes, já a Curitiba industrializada formou os grandes bairros periféricos, super-populosos, desafiando sua integração à cidade, não raro tornando-se independentes, com vida própria.
Mas pouco importa quão inchado esteja o corpo da nossa Curitiba, pois quanto mais cresce, mais seu coração abarca, embora possa não parecer, afinal, temos a fama (merecida) de ser antipáticos, desconfiados, calados, com cara de poucos amigos. Mas a verdade é que Curitiba acolhe, tratando a todos, os aqui nascidos ou não, residentes ou emigrados, como seus piás, no sentido original da palavra. Se Curitiba falasse, o que nos diria hoje, no seu aniversário de 326 anos? Desconfio que declamaria o Cântico, de Helena Kolody:
Dono do meu sorriso e causa do meu pranto!
Se adivinhasses que, ao passar absorta,
Vou sonhando com teu olhar profundo…
E nada mais existe neste mundo,
E tudo mais na vida pouco importa.
A luz do teu olhar é a estrela solitária
Da noite deste amor que é feito de silêncio.
Em meu enternecido coração,
O teu nome ressoa em notas graves
Como no amplo recinto de altas naves
Um cântico de imensa devoção.
Eterno sonhador, teu vulto pensativo
Vive na timidez do meu amor esquivo.