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Como os livros podem superar a falência das livrarias

Priscila Forone/Gazeta do Povo (Foto: )

Duas das maiores redes de livraria do país, Livraria Cultura e Saraiva, deram um susto no mercado de livros neste ano de 2018.

Para se ter uma ideia do tamanho do problema, a Livraria Cultura fechou inúmeras livrarias, incluindo suas grandes lojas no Recife e na cidade do Rio de Janeiro. Hoje, acumula uma dívida com fornecedores em aproximadamente R$ 300 milhões. Em 24 de outubro deste ano, entrou com pedido de recuperação judicial. Por sua vez, em março, outro susto no mercado: a Saraiva comunicou às editoras que não pagaria suas dívidas referentes às vendas do último período do ano passado. Em novembro, também entrou com pedido de recuperação judicial. Até outubro, são pelo menos 20 lojas fechadas.

O que a falência dessas grandes livrarias representa para o mercado de livros no Brasil? Para entender esta pergunta, entrevistei Dionisius Amendola, que trabalha com o “negócio de livros” há mais de 18 anos. Hoje, é consultor na UmLivro e mantém o Bunker do Dio, canal no YouTube especializado em artes e cultura. 

Na sua opinião, é possível falar em crise no mercado de livros brasileiro?

Em primeiro lugar, é preciso delimitar a crise. O mercado do livro no Brasil é um mercado que mantém certa estabilidade, mas o problema é que, nos últimos anos, duas das mais importantes livrarias do país, Saraiva e Livraria Cultura, entraram em colapso e não conseguiam honrar os compromissos com as editoras e distribuidoras. Isso afetou boa parte das editoras, que simplesmente não receberam os valores devidos destas duas livrarias. Por isso, a atual crise é muito preocupante. O faturamento mensal de muitas editoras dependia destas duas casas, que respondiam em média por 40% a 60% do total.

Por outro lado, o livro em si não passa por uma crise. Acho que nunca se falou tanto sobre livros, sobre cultura e sobre a importância deles para a sociedade. E, mesmo em vendas, vemos que há uma curva boa, que, se não é de crescimento, também não é de queda. Há, sim, imenso potencial de crescimento! Seja o livro físico ou o digital, vemos que existe uma demanda sendo atendida.

Um exemplo disso é o crescimento da venda direta entre editoras e leitores. A Vide Editorial e a É Realizações são vanguarda nesse tipo de relacionamento. Hoje, as duas editoras apresentam um crescimento muito concreto. Outra prova de que a crise não é do mercado como um todo: o livro foi o produto mais procurado nas vendas desta última Black Friday! Ou seja: as pessoas estão interessadas em consumir esse “produto”, embora não estejam dispostas a pagar caro por ele.

Há um “Efeito Amazon” responsável pelo que está acontecendo com as livrarias Cultura e Saraiva?

A Amazon tem sido colocada como vilã, mas de forma injusta. A bem da verdade, se hoje essa grande empresa tem uma proeminência clara e atua forte no mercado, é porque soube ocupar o espaço aberto pela concorrência. E aqui um ponto importante: Saraiva e Cultura entraram nesta crise justamente por querer “competir” com a Amazon, sem perceber com clareza que o negócio da Amazon é de outro calibre e peso. Em vez de apostarem naquilo que tinham de melhor, as duas redes tentaram disputar diretamente contra a Amazon. Resultado? Perderam. Um exemplo concreto que podemos apontar dessa aposta errada é que a Livraria Cultura, que sempre teve um amplo leque de micro e pequenas editoras sob seus cuidados, abriu mão dessa relação em prol de produtos mais “comerciais”. Hoje, essas pequenas editoras não estão mais em lugar nenhum, pois a Amazon, com todo o seu catálogo, não as absorveu.

Qual foi o principal erro dessas grandes redes de livros?

Como em toda grande crise, não foi uma coisa só. Temos aí a conjuntura econômica do país, que se deteriorou e afetou a todos. Mas a crise para o mercado dos livros poderia ter sido menor, especialmente para estas livrarias, caso elas não tivessem sucateado as lojas físicas em benefício do e-commerce; da aposta errônea no advento dos livros digitais, que até hoje não representam nem 10% do volume de vendas totais de livros no país.

Existe um fato pouco comentado, que foi o crescimento anabolizado por empréstimos no BNDES; algumas decisões mais “conceituais” que só vieram a piorar todo o quadro: a troca de livreiros e funcionários, que conheciam o livro para além de seus apelos meramente comerciais, por atendentes que mal se interessam pelo que vendem; a visão de que o livro é um produto como outro qualquer, perecível, com data de validade, quando é justamente um dos produtos menos propensos a perder valor.

A visão puramente economicista do negócio do livro também catalisou outras atitudes que considero suicidas, especialmente para as editoras. Quando, em determinado momento, as duas maiores livrarias passaram a ter um peso imenso para as editoras, estas livrarias começaram a exigir mais descontos, mais prazos de pagamento, e a cobrar pelo espaço nas lojas para a exposição dos títulos das editoras. Ora, aquelas editoras que tinham capacidade financeira e tamanho para tal entraram na dança; as menores tiveram de se sacrificar ainda mais e também dançaram este balé mortal. Ou seja: todo mundo pensava só em lucro em cima de lucro, e poucos realmente estavam atentos à sustentabilidade do negócio.

Pegaram todo mundo de surpresa?

Para quem acompanha o mercado, isso já era uma realidade desde pelo menos 2012 — ali, quem era do ramo e vivia o dia a dia do negócio do livro conseguia perceber que o modelo já não era sustentável. Em vez de pensarem juntos, livrarias, editoras e distribuidoras simplesmente olharam cada um para o próprio umbigo, e tomaram decisões cada vez piores. O verdadeiro sinal vermelho foi o fechamento da Cosac Naify em 2015. Desde então, o problema foi sendo empurrado com a barriga. Quem trabalha com livros viu muitos erros sendo cometidos. Tanto que muitas editoras recebiam com atraso os seus pagamentos, e precisam procurar as livrarias para renegociações etc.

Poderia falar um pouco mais do que aconteceu com a Cosac Naify — o que a falência dessa grande editora significou para o mercado?

A Cosac Naify era uma daquelas editoras pela qual os livreiros e leitores eram apaixonados. Ela tinha um dos mais belos catálogos do país, não apenas em termos de autores, mas no cuidado com as edições — projetos gráficos belíssimos, com traduções excelentes. Simplesmente abarcava o que de mais próximo podemos imaginar de uma editora em país de primeiro mundo. Ao mesmo tempo, a Cosac nunca conseguiu ser uma editora “popular”, que ultrapassasse um determinado círculo de leitores. Justamente pela sua alta qualidade, não conseguia equilibrar o comercial com o conceitual. No que diz respeito aos preços dos livros, a Cosac não era propriamente uma editora barata.

Durante muito tempo, conseguiram manter a editora — mas sempre com aporte externo, nunca pelas próprias vendas. Com o tempo esse desequilíbrio só aumentou, até o ponto do colapso final, quando eles não deram conta. Mas note que há uma agravante no caso da Cosac: eles sempre evitaram ao máximo “se rebaixar” ao público mais popular, isto é, buscar edições mais baratas, considerar a parte comercial antes da conceitual etc. Curiosamente, nos últimos anos de sua existência, a Cosac fez diversas promoções com seu catálogo, como queimas de estoques e vendendo títulos quase a preço de custo. Hoje, essas edições custam pequenas fortunas nos sebos por aí afora.

Quais são suas expectativas para o mercado de livros nos próximos anos?

Sem querer ser profeta de uma terra devastada, creio que antes de tudo precisamos entender que há um problema sério: muitas editoras estão com dívidas imensas com gráficas, bancos etc. Estas dívidas foram contraídas pelo não pagamento dos valores devidos pelas livrarias. Com isso ocorreu um desmanche pesado nas editoras, muita gente boa foi demitida, muitos títulos não mais serão lançados por aqui, autores novos não terão mais oportunidades em boas editoras, e por aí vai.

Portanto, temos, sim, de nos preocupar com o “negócio do livro”. Contudo, não adianta esperar um milagre, é preciso agir, mudar o jeito de pensar e de atuar.

As editoras precisam depender menos das grandes redes, não dá pra colocar todos os seus ovos em uma única cesta (como vejo algumas editoras fazendo agora com a Amazon), é preciso diversificar os canais de venda ao máximo; criar laços diretos com o leitor. Por exemplo, através de clubes de assinaturas e da venda direta para o leitor final; identificar temas importantes que ainda precisem de bibliografias decentes no país (o que temos de títulos de filosofia, história clássica, política etc. não publicados por aqui é absurdo!). Por isso, acho fundamental buscar obras estrangeiras que tenham resistido ao “efeito Lindy”, isto é, que tenham se provado relevantes ao longo do tempo.

Em termos mais técnicos, alternativas como a impressão sob demanda (praticada pela UmLivro, por exemplo) são saudáveis e que a cada dia se mostram mais eficazes. A consignação em si não é um problema. O problema se dá quando isso significa mais de 50% da “venda” da editora. Também vemos surgir aqui e ali editoras apelando para o crowdfunding — financiamento coletivo —, que nada mais é do que estar mais próximo do leitor. Se vai funcionar para todo mundo é uma incógnita, mas eis aí mais uma alternativa.

Outro ponto de desengano: nessas horas, aparecem por aqui e ali apelos para que o governo faça alguma coisa, que crie tabelas de preços fixos, que limite isto ou aquilo. Ora, isso é tapar o sol com a peneira! O que encarece e afeta o negócio do livro no Brasil é aquilo que encarece todos os negócios no país: custos trabalhistas, aluguéis e impostos caríssimos, custo com transportadores e fretes de mercadorias exorbitantes etc. Se for para pedir que o governo interfira em alguma coisa, é que faça de tudo para desonerar ainda mais as empresas que lidam com cultura, não inventar mais interferências.

O mais importante de tudo isso é o seguinte: não podemos continuar a tratar como fetiche algo que devia ser natural, habitual em nossas vidas. Enquanto quem lida com cultura não entender que os livros devem fazer parte do nosso cotidiano e não ser algo excepcional, cheio de tartufices virtuosas, nunca sairemos da “crise”. Os livros e a leitura devem fazer parte do nosso dia a dia, não dá para “salvar o livro e a cultura” pensando neles só de vez em quando. Pior ainda: pensar no livro como uma narrativa de “resistência política” é apostar no fracasso de nossa cultura, ou do que restou dela. O livro em si é antifrágil (vai sempre resistir a qualquer crise); já as empresa que usam e abusam dele não.

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