Não me lembro direito em qual programa de rádio foi, mas esses dias ouvi um rapaz dizendo que a discussão sobre teoria de gênero não pode ter respaldo na biologia. Segundo ele, “a biologia estaria atrelada à moral cristã opressora” e por isso não pode servir de base para determinar a identidade de alguém. Homem e mulher não são o que são por causa de aspectos biológicos. O que determina cada um de nós são as nossas inclinações psíquicas.
Na minha não tão humilde opinião, a sempre polêmica teoria da identidade de gênero tem um furo gigantesco: depende de uma concepção dualista da “natureza humana”, que é falsa. Dualista por reduzir o ser humano a duas realidades independentes e até conflitantes: o corpo biológico e a consciência subjetiva. E, por favor, isso não tem nada a ver com o filósofo René Descartes, que também tinha uma visão dualista do ser humano. Para Descartes, a alma humana é imortal e capaz de conhecer Deus como seu criador. Descartes, devoto de Nossa Senhora, não enclausurou o homem num psiquismo medíocre.
No caso da teoria da identidade de gênero, há uma confusão tanto no significado do corpo quanto no da vida psíquica. Reduzem os dois: o corpo é reduzido como objeto de estudo para o biólogo; a vida psíquica é vista como nada além da expressão do que sentimos internamente. Fora o maniqueísmo por baixo da causa: o corpo é mau; o sentimento de si, bom.
Por exemplo. Uma menina, anatomicamente constatada menina, chega para os pais e diz: “me sinto menino”. Os pais, confiantes na pureza do desejo de seu única e linda filha, acatam a percepção interna que só a criança pode ter de si mesma e a bajulam com todos os mimos possíveis. Nada contra. Sou pai e por isso sei bem o quanto um pai zeloso tomaria a atitude de consultar um bom psicólogo antes de chamar a filha de filho. Na dúvida, recorrer a um especialista para ajudar nossos pequenos é a melhor atitude. Meu filho Davi, por exemplo, diz ser o Hulk. Não me oponho. Na infância eu gostava de me vestir como o Super-Homem, com cueca vermelha e tudo — mas vamos deixar isso pra lá.
De qualquer forma, quem melhor do que a própria criança para compreender e fazer coincidir, por meio do charme e da doçura, sua percepção psicológica interna com sua natureza corporal externa? Psicólogos estão aí justamente para ajudar na batalha interior travada por cada um de nós. E fazem isso sem assumir responsabilidades pelas derrotas ou créditos pelas vitórias, pois o mérito em aceitar que “ter experiência psicológica interna do jeito que me satisfaz” como algo “normal” a ser “absolutamente compreensível pela sociedade” é apenas dos jovens. Não sei o que é olhar para o meu corpo e ver outra coisa senão a mim mesmo, portanto não tenho competência para falar dos dramas alheios.
A experiência psicológica interna de se “sentir” alguma coisa diferente do que se é em carne e osso está baseada numa ideia de que o sentimento interno é infalível, pois fundamenta-se na pureza moral dos bons sentimentos. O corpo, determinado pela biologia, seria mais um obstáculo opressor que precisa ser subjugado pelas regras da experiência interior. A teoria da identidade de gênero paradoxalmente nega a identidade antropológica da relação “mente-corpo”. Ao negar, portanto, rejeita o corpo como realidade irrelevante para construção da própria experiência da identidade pessoal. Não sou meu corpo, sou o que sinto a respeito de mim mesmo. Meus sentimentos, minhas regras.
A propósito, falando de dramas pessoais, eu recomendaria o leitor procurar uma página no Facebook chamada Special Books by Special Kids Group. Conta com um pouco mais de 2 milhões de seguidores. Na verdade, o SBSK, como são conhecidos, é uma organização criada pelo professor Christopher Ulmer, da Filadélfia, que faz vídeos com crianças de todos os lugares do mundo e com um objetivo nobre. Curiosamente, as crianças são portadoras de alguma necessidade especial severa que provoca grandes deformação no corpo. Os relatos dessas crianças têm o objetivo de garantir que nenhuma seja estigmatizada pelo que… são, enquanto encarnadas num corpo. A missão de Christopher é demostrar a preciosa relação entre corpo e identidade pessoal. Porque é disso que se trata: somos, literalmente, encarnados. Não faz sentido falar de identidade pessoal sem considerar o corpo.
Uma concepção mais correta e abrangente de ser humano não faz a distinção entre corpo e mente como duas realidades antagônicas. Pelo contrário, de um ponto de vista da antropologia filosófica mais robusta, que eu pessoalmente prezo muito por seu apelo à singularidade pessoal, o corpo pode ser entendido de três maneiras: material, orgânico e intencional. Cada um de nós, na verdade, encarna essas três concepções sem excluí-las ou reduzir nosso “corpo próprio” a cada uma delas. Dessa forma, podemos pensar o ser humano a partir de uma visão universal, e isso para ficar apenas no componente “corporal” — sem considerar a vida psíquica e as capacidades intelectuais.
Em alemão, há duas palavras para “corpo”: Körper e Leib, que os filósofos chamam de “corpo objeto” e “corpo sujeito”.
O termo Körper se refere à estrutura, à construção ou ao suporte esquemático; enquanto Leib é a carne, o corpo vivido do interior por alguém. Körper é o “corpo objeto”, o corpo que eu tenho e cujo funcionamento depende de leis que não tenho controle. Trata-se do corpo que o biólogo estuda, por exemplo. O aspecto material corresponde à totalidade físico-química e do corpo e o orgânico à totalidade biológica. É um erro achar que somos só expressão desse corpo biológico. Já Leib, por sua vez, tem a ver com o caráter intencional da nossa experiência pessoal. Leib é o “corpo sujeito”, o corpo que eu sou e que você é e mediante o qual eu vivo minha vida e você a sua. Os filósofos chamam a essa dimensão intencional de corpo próprio. Para você que está vivo e lendo este artigo, ser e ter um corpo é vivê-lo da maneira intencional antes de vivê-lo como matéria física e orgânica.
Eu fico impressionado como o debate público sobre teoria de gênero desconsidera essas dificuldades enquanto perde tempo discutindo se menino veste azul e menina veste rosa. Um tratamento mais adequado não só acerca da experiência de sofrimento psicológico, mas também sobre a própria noção de corpo ajudaria muito o debate, hoje reduzido em meras expressões de “corpo” como entidade biológica e “alma” como mera expressão de sentimentalismo tóxico.
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