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Religião não pode ser imposta a uma pessoa mediante coerção e muito menos ser retirada. Não se deve obrigar ninguém a acreditar em Deus ou em qualquer outra promessa sobre o destino da alma, mas tampouco arrancar-lhe a crença sem destruir sua liberdade e sua consciência. O Estado laico não é só neutro em matéria religiosa, mas esfera distinta em natureza e soberania. O que faz dele um novo problema teológico. Sua estrutura institucional funciona de maneira independente de sistemas metafísicas? Tenho cá minhas dúvidas. Principalmente quando professam que sua soberana independência tem uma finalidade crucial: garantir que as pessoas professem suas crenças e descrenças religiosas sem, aparentemente, ser ele mesmo uma nova religião. Será?

Na modernidade, o Estado nasceu para assegurar liberdade religiosa dos indivíduos e apaziguar conflitos, sobretudo contra as pretensões de velhas e devotas forças e ordens imperiais. Até aí parece muito promissor.

O Estado moderno laico é filho do liberalismo, da crise do humanismo católico, do esgotamento dos impérios e da emergência das identidades nacionais. Ele também é fruto da Revolução Científica, da emancipação do indivíduo e dos hinos de louvores à Razão. Filho de Maquiavel e Hobbes, filho de Locke e Rousseau. Filho de Kant, Diderot e Voltaire, mas também de Hegel e Marx. Noutras palavras: nasceu para a religião dos clérigos não se meter no Estado e, principalmente, para o Estado se meter na religião dos clérigos. Para isso, cercou-se de muros institucionais e evitou que o irracionalismo religioso invadisse a repartição e o espaço público.

A religião revelada passou a ser uma questão de foro íntimo no sentido de ser um assunto doméstico e subjetivo — como gostar de sorvete de pistache ou decidir a que filme assistir no domingo à noite — muito mais do que no sentido de ser assunto de consciência pessoal responsável por esperança e redenção. Para os mais moderados, religião é crendice tolerável; para os mais ousados, estupidez. O Iluminismo moderado prometeu resolver o problema da estupidez com ceticismo e freio nos apetites. Os radicais, enforcando o último monarca com as tripas do último padre (não necessariamente nessa ordem).

Em vez disso, os problemas se intensificaram. Sem juízo de valor e sem qualquer nostalgia reacionária, vivemos numa época de extremo pluralismo. Minto, farei juízo de valor: o pluralismo é bom — claro, desde que seu inimigo não tente te enforcar com as tripas de um desafeto dele. Vivemos entre opiniões distintas e conflituosas. Ateus acreditam na vida aqui e agora. Os mais corajosos acreditam no absurdo da existência. Os domesticados, no conforto do naturalismo depositam sua fé na ciência e no progresso.

Cristãos, pelo contrário, esperam a ressurreição da carne e glória do Nosso Senhor Jesus. Católicos acreditam que o papa é o vigário de Cristo. Evangélicos não acreditam no papa. Luteranos e calvinistas são amigos até certo ponto. Há católicos sedevacantistas, católicos papistas, católicos carismáticos, católicos que acreditam que Francisco é agente infiltrado do comunismo e até católicos não praticantes. Tem para todos os gostos. Há budistas, xintoístas, muçulmanos e espíritas. Custei para acreditar nisto: é verdade que existem devotos da religião positivista.

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Sem contar a quantidade de ideologias que prometem algum tipo de final feliz para a história. Verdadeiras religiões substitutas nascidas no seio do Iluminismo que flertaram acima de qualquer suspeita com o poder. As mais ortodoxas e tradicionais são o liberalismo, o socialismo e o comunismo. Uns são moderados, outros radicais. Céticos ou dogmáticos. Nacionalistas ou internacionalistas. Pacifistas ou militaristas. Essas visões de mundo ditaram os principais conflitos no fim do século 19 e início do 20. Em vez de final feliz, entregaram tragédias — como um mero epifenômeno do entusiasmo pelo Bem. Lembrando que as tragédias do século 20 têm muito mais a ver com o fato de as pessoas terem sido verdadeiras devotas de sua própria bondade.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, com a tentativa de manter as narrativas sobre o final feliz da história, vem a Guerra Fria. Fracassou, ainda bem. Mais conflitos ideológicos se instauram. Intelectuais proclamavam o fim da história. Democracia liberal capitalista ou república socialista? A partir da queda do Muro de Berlim e do fracasso dessas lindas histórias, começam a pipocar as agendas pós-modernas que intensificam a fragmentação plural da sociedade com seus “grupos minoritários”: os negros, os LGBTQIA (não sei se é só isso), as mulheres, os indígenas e qualquer grupo que busque uma identidade a partir de sua vulnerabilidade e da benevolência compulsória. São novas e mais complexadas formas de religião substituta que precisam chamar o Estado de “Meu único Deus”.

O problema não é a pluralidade das crenças. O problema dos conflitos sociais é justamente a forma política do Estado moderno e a natureza teológica de sua soberania. O Estado moderno nasceu como príncipe para governar como tirano. Precisa fazer de tudo para oferecer respostas salvíficas como a única entidade capaz de garantir sua própria estabilidade, unidade e identidade. O Estado se encarnou como novo ídolo que se alimenta de conflitos e do que é conveniente para sua própria subsistência. É o deus parasita que vive de nossas pequenas misérias diárias, deus que cresce em poder com nossas mesquinharias. É, pois, a única religião que impõe culto à sua soberana forma política pela coerção e pela glória de mandar.

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