Ernesto Araújo disse mais uma vez que o nazismo é de esquerda. Jair Bolsonaro, homem de cultura política sem igual, subscreve a tese. Não sei bem por que, mas algo nessa prosa me traz à memória o desenho animado Pinky & Cérebro. Divago.
A bibliografia especializada situa o nazismo como movimento de extrema-direita, em alguns aspectos semelhante à esquerda, porém distinto noutros pontos bastante essenciais. Passo ao largo desse ocioso debate, até porque ninguém quer ser convencido da posição contrária. Mais do que discutir o conteúdo do que disseram Araújo e Bolsonaro, interessa notar a forma; mais do que o texto, o subtexto. E, enfim, o pretexto.
Antes, um preâmbulo.
Os termos direita e esquerda, que hoje servem para definir o cardápio do almoço de tanta gente, não são conceitos científicos em sentido estrito. São arranjos provisórios, fugidios, instáveis e referenciais; valem mais ou menos, explicam mais ou menos, em virtude de como, onde e quando são lidos, e a depender do centro de gravidade do poder em questão.
Surgiram nos calorosos debates na Assembleia Nacional francesa, em torno da Revolução que se avizinhava, pelos motivos mais prosaicos: os que sentavam à direita do rei queriam a permanência do regime; os que sentavam à esquerda queriam a revolução.
O que se segue é história, mas a história andou se repetindo como farsa por aí. É preciso reforçar: nossos termos tão queridos não são elaborações intelectivas, não são fórmulas químicas ou matemáticas, mas associações casuais, parentesco de circunstância.
Hoje tida como líquida e certa, a consonância entre liberalismo e conservadorismo é menos óbvia do que soa à primeira vista. Não por acaso, a Igreja Católica rejeita a cosmovisão liberal (basta ler os documentos, a doutrina e os apologistas). René Guénon, referência do chanceler, por outros motivos rejeita com ainda mais paixão.
Em suas raízes, o liberalismo é um conjunto de princípios “de esquerda”, aspas propositais para destacar semelhanças e diferenças ante o esquerdismo tout court: existe no liberalismo um elã de mudança, de instrumentalização do mundo, de instabilidade social e de afronta à aristocracia que sempre desagradou tradicionalistas, clérigos e demais críticos da modernidade.
Liberais gostam de mobilidade social, desprezam hierarquias rígidas, louvam o empreendimento, criticam os privilégios, promovem o lucro, cultivam o mérito do egoísmo, defendem liberdades políticas e sociais. Tudo o que monarquias históricas não aceitavam muito bem. A Igreja, por sua vez, aceita porções de liberalismo: comércio, empreendedorismo, propriedade privada; mas afasta outros princípios: a busca incessante do lucro, o desapreço à tradição, a tendência ao relativismo epistemológico e ético.
Dessa crítica feroz ao conservadorismo e às monarquias absolutistas, nascida na Revolução Francesa, os vários flancos do movimento liberal se estilhaçam e sofrem metamorfoses, ganham contornos específicos, assumem formas distintas, adotam táticas e estratégias diversas, absorvem princípios filosóficos particulares: em linhas gerais, o liberalismo reformador é aquele que hoje chamamos de liberalismo puro e simples, de inspiração anglo-saxã, herdeiro da Revolução Branca; já a matiz revolucionária do liberalismo, esta sim anarquista, socialista romântica ou marxista, desembocou no terror, na rejeição ao mercado, na utopia gnóstica de um Estado sem classes e na ditadura bolchevique.
Por aí se vê o quão problemático é dizer que isto é direita, e é bom; aquilo é esquerda, e é ruim. O que importa é perceber que o que hoje nos parece ter nascido prontinho, com olhinhos azuis, no primeiro dia da Criação do mundo, não é muito mais do que acidente histórico, posicionado no tempo, referente a um evento político específico. Esse caráter improvisado do nascimento dos termos direita e esquerda foi sendo aos poucos tido como fixo, imutável, indiscutível.
Então voltamos à heterodoxa afirmação de que o nazismo é movimento de esquerda. Suspeito que, mais do que estudos aprofundados e eruditos revisionismos, o que importa mesmo para o ministro é dividir com precisão os times para conseguir odiar melhor o time adversário. Ernesto Araújo e Jair Bolsonaro não parecem dispostos a governar um país, mas sim propensos a jogar com rivalidades.
Quando assumimos um lado, e acreditamos na realidade quase ontológica desse lado, podemos ignorar as dificuldades tremendas de lidar com os problemas da ciência política que escapem do emaranhado retórico.
Ao dizer que a direita é isso e a esquerda é aquilo, assim, preto-no-branco, desistimos de usar conceitos muito mais claros e férteis na discussão política, como poder, Estado, mercado, coerção, legitimidade, representatividade, autoritarismo, revolução, guerra justa, hierarquia, regicídio, impostos, regimes, sistemas, igualdade, liberdade. Enfim, tudo o que a filosofia e a ciência política discutiam antes de que tudo se resumisse em direita e esquerda, Palmeiras e Corinthians, Bolsonaro e Lula.
Determinados personagens desse governo, opostos simétricos aos personagens dos governos petistas, querem fomentar e gerenciar conflitos para se oferecer como advogados, acusadores e juízes, a um só tempo. Usar e abusar dos agrupamentos ideológicos, dos instintos quase tribais de quem se diz de direita ou esquerda, é truque velho de manipuladores. Lula sempre usou muito bem isso. Bolsonaro, bom aprendiz, também usa.
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