Tem causado sensação o original e interativo Bandersnatch, longa-metragem derivado da (ou conectado à) série Black Mirror. Toda a gente sabe do que se trata a série e, a esta altura, o filme. Esta breve crônica é para fazer uma crítica meticulosa e bem-informada, que consiste no seguinte:
Não vi. Não verei. Não gostei. Quase tenho raiva de quem viu e gostou.
Esta é a melhor crítica possível; se calhar, a única. Passo ao largo dos méritos e deméritos da película. Eles não importam, na medida em que o diretor sugere que o que importa mesmo é a minha opinião.
Explico.
De acordo com os especialistas, com os fãs assombrados e com o que se depreende dos inevitáveis spoilers veiculados, a audiência decide os rumos da vida e o destino final do protagonista. Não procurei detalhes, mas o que vale na experiência é primordialmente isso: que o expectador decida o começo, o meio e o fim.
Convenhamos que não é ideia das mais originais. Variações dessa natureza já foram tentadas na tevê e na literatura; o que é novo é o instrumento, a ferramenta, o nível de interação, o “clima Black Mirror” da brincadeira.
Quando soube que era disso que se tratava, perdi imediatamente o interesse. E não me interessa descobrir se as tantas variações possíveis – a combinação de todas elas, dizem, chega a 5 horas de duração – são bem-feitas, pensadas, elaboradas, roteirizadas, interpretadas. Podem até ser; se me garantirem que são, acredito sem discutir. Não, muito obrigado, vou perder tempo de outra maneira.
Escrevendo este texto, por exemplo.
Minha rejeição – e, portanto, minha crítica – é conceitual. Filosófica, eu diria. Pode ser resumida na seguinte pergunta: “Por que devo assistir a uma obra aberta, tão aberta que, na prática, sou eu quem decido seu desenvolvimento, seu sentido e seu acabamento?”
O filme terá este ou aquele enredo, este ou aquele final, este ou aquele sentido, dentro de uma gama de enredos, finais e sentidos possíveis. Pior: ele poderá ter todos os enredos, finais e sentidos, bastando que eu tenha a paciência – ou a tara – de selecionar, montar e assistir a todos eles. Como se fosse uma espécie de lego fílmico. E lá quero eu selecionar e montar meu próprio filme?
Sou capaz de compreender a diversão do caso em especial: que este filme funcione como é, como peça a ser montada e manipulada, puro e descartável entretenimento, sinal de um processo cada vez mais comum de gamificação da arte e da cultura: em tudo estamos no comando, interagimos, participamos, atuamos, mimetizamos. Mas que seja este, e não seja o futuro.
Eu me lembro de um episódio de Seinfeld. Kramer tem ideia de abrir uma pizzaria em que os clientes façam sua própria pizza. Toda ela. Os clientes não apenas escolhem os sabores, mas literalmente botam a mão na massa, temperam e apuram o molho, levam ao forno, assam a pizza e então se servem. Depois lavam os pratos e os talheres.
Anos depois, a proposta foi levada ao cinema e é tida como vanguardista.
Quero de um filme, de um livro, de uma pintura, de uma música ou de uma pizza justamente aquilo que não fiz, que não sou eu, que não está contaminado por mim, que não leva meu tempero. Quero de Ulysses o que James Joyce quis de Ulysses. Se eu pudesse escrever ou reorganizar um Ulysses melhor, seria meu, e não do Joyce. E não seria Ulysses, afinal de contas.
Se desejo assistir a um dos filmes do Woody Allen, desejo precisamente porque são do Woody Allen, tal como ele os roteirizou e dirigiu, com as piadas escolhidas e reiteradas, com as escolhas estéticas dele. Não quero outro romance que não seja o romance disfuncional entre Annie Hall e Alvy Singer.
Não quero mudar os versos de um poema, os acordes de uma canção, as cores de uma pintura. Não devo trocar uma palavra num conto de Borges, acabar um inacabado final de Kafka, deslocar um ponto-e-vírgula de Machado de Assis, explicar uma ironia de Eça de Queiroz. Não me passa pela cabeça a indiscrição de saber o que terá dito Bob Harris a Charlotte, numa das cenas mais bonitas e delicadas do cinema contemporâneo. O segredo fica entre eles, como quis Sofia Coppola.
Quero, aliás, que me proíbam de querer qualquer outra coisa que não seja a fruição da obra de arte, com suas intenções e deficiências, com sua inapelável alteridade, pois vivemos tempos maníacos, de interação doentia, e isso está a se aproximar com perigo dos objetos estéticos e intelectuais.
Uma das discussões sobre a permanência do livro vai além daquela que diz respeito ao seu formato ou suporte – se em papel, se digital, se em áudio. Discute-se, cada vez mais – e a sério – sobre a própria natureza do objeto intelectual ou estético que conhecemos como livro, sua unidade intrínseca, sua qualidade de ser obra autônoma e até certo ponto autorreferente.
Há estudiosos das novas mídias e tecnologias que pregam a morte do livro nesse sentido. Em pouco tempo, não leremos mais livros inteiros, mas fragmentos, trechos, recortes, colagens, citações. Os mecanismos de busca nos trarão (já trazem) do livro apenas aquilo que dele queremos, antes mesmo de lê-lo. O livro se tornará uma espécie argamassa, uma coisa plástica, útil, dócil, obediente às nossas perguntas e respostas. Deus me livre e guarde.
Deus me livre e guarde de me entusiasmar com um mundo onde os objetos de cultura sejam como massa de modelar, escravos da minha vontade, reféns daquilo que chamam de “experiência”. Numa época em que a sacralidade religiosa e a contemplação filosófica já não são vivenciadas, a última fronteira é a da arte – mesmo da arte menor.
Não gostei do filme Bandersnatch porque não quero decidir nada em um filme, a não ser assisti-lo, reagir a ele, gostar ou não gostar dele. Quero-o tal e qual, bom ou ruim, curto ou longo, crível ou não.
Se for para decidir outra coisa, arrumo uma câmera, escrevo um roteiro, convido qualquer um na rua e filmo meu próprio filme.
Como um verdadeiro punk.
Como uma criança birrenta.
Como um cliente da pizzaria de Cosmo Kramer.