Quando o Estado Islâmico, que naquela altura já havia praticado as mais atrozes carnificinas, começa a destruir templos, museus, bibliotecas e sítios arqueológicos na região entre a Síria e o Iraque, o escândalo se estabelece.
Ninguém dirá que uma, duas ou mil mortes valem menos que o patrimônio artístico e cultural da humanidade.
Uma morte é uma morte é uma morte.
Entretanto, atentar contra a própria memória humana, materializada em seus objetos e rastros, em suas ruínas e traços, significa atentar contra a humanidade de forma ainda mais radical que o assassinato. É como se fosse possível matar duas vezes, infinitas vezes.
Como se aos fanáticos não bastasse a morte de um, dois, mil homens, mas sim o pleno esquecimento – de todos eles, de todos nós.
George Steiner já se perguntava, no ensaio Aqueles que queimam os livros:
“– Como pode ser possível que alguns traços sobre uma tabuinha de argila, riscos de pena ou de lápis que muitas vezes mal chegam a ser legíveis num frágil pedaço de papel, constituam uma persona – uma Beatriz, um Falstaff, uma Anna Karenina –, cuja substância, para tantos leitores ou espectadores, excede a própria vida na sua realidade, na sua presença fenomenal, na sua longevidade social e encarnada?”
Pois a destruição do patrimônio cultural, arqueológico e artístico de um povo é uma destruição simbólica e radical: quem faz isso pretende que o futuro não tenha contas a prestar ao passado. Quem derruba templos e bibliotecas quer fazer de si mesmo o templo e a biblioteca. Quem toca fogo em Beatriz, Falstaff e Anna Karenina quer fazer de si mesmo Beatriz, Falstaff e Anna Karenina.
Há um ódio especial nesses atos, absoluto e intransigente.
Mas esse ódio também pode tomar a forma insidiosa do descaso e do desapreço. Se noutras paragens a violência é bruta, viril, frontal e, de certa maneira, corajosa em seu niilismo, em tristes trópicos como o nosso ela se transmuta em indiferença.
Ódio por assim dizer mole e covarde.
Tudo o que há de ruim no Brasil é anunciado com antecedência. Somos de eficiência alemã no planejamento do fracasso.
Em 2010, mais de 70 mil espécies foram queimadas durante incêndio no Instituto Butantã.
Há não muito tempo, certa reportagem alertava para o descaso com que vem sendo tratada a Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Infiltrações, cupins, estruturas comprometidas, rede elétrica prestes a colapsar, ambiente inóspito, nenhuma tecnologia.
Em 2015, um incêndio destruiu o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo.
E agora o Museu Nacional engolfado em chamas. O museu queima, o país arde. Tudo é tão corriqueiro e literal que nem serve mais como metáfora. Virou lugar-comum.
Muitos lamentam nosso “trágico” destino. O problema é que da topologia trágica nós não temos todos os elementos. Temos a inevitabilidade, mas não o heroísmo; o sofrimento, mas nunca a catarse.
Somos atores e expectadores duma peça dificilmente classificável, que não se decide entre o trágico e o cômico, entre o ridículo e o grave.
As chamas que consumiram aproximadamente 20 milhões de itens de uma das mais importantes instituições científicas da América foram acesas todos os anos, todos os dias, como velas que se acendessem para alguma divindade má que demorava a chegar.
Chegou.
O Museu Nacional do Rio de Janeiro, na Quinta da Boa Vista, sobreviveu por 200 anos ao Brasil. Resta saber se o Brasil sobreviverá a si mesmo, e por quanto tempo mais.
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