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Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça

Michelle Bolsonaro (Foto: )

O momento mais tocante da cerimônia de posse presidencial, como não poderia deixar de ser, foi o de Bolsonaro. De Michelle Bolsonaro, esclareça-se.

Enquanto o presidente confundia posse com campanha, Planalto com palanque, e falava aos seus eleitores mais que ao país que governará, o vice-presidente (Deus conserve a saúde de Bolsonaro!) bradava como profeta bíblico, exibindo suas credenciais oratórias e assumindo de vez o papel de Mourão do Caps Lock.

Nada disso é surpresa. Resta saber se não passará disso, já que o ano começa, Lula-tá-preso-babaca, o PT perdeu, os problemas urgem e precisamos antes de soluções que de promessas; antes de razão que de paixões.

Razão que, por caminhos insuspeitos, pode vir de onde menos se esperava: da discreta e muito oportuna primeira-dama. Espero que ela tenha, sobre o presidente, mais influência que os filhos dele, sempre tão dispostos ao confronto contra moinhos e comunistas de vento.

A ironia: ao discursar como discursou, ao dirigir-se ao público a que se dirigiu, Michelle merece aplausos por motivos bem diferentes daqueles que deram a vitória democraticamente merecida ao seu marido. Com delicadeza e bom senso, pediu paz, e se lembrou, como nunca antes tinham sido lembrados, dos deficientes auditivos e demais deficientes. Minorias, minorias.

Sim, ela quebrou o protocolo, mas não somente o da cerimônia. O protocolo quebrado foi o da campanha, da disposição belicista e conspiratória durante as eleições. Michelle Bolsonaro acertou muito porque foi mais Michelle que Bolsonaro.

Os militantes, como de costume, entenderam como quiseram entender. Ou ajustaram a (palavrinha desgastada) “narrativa” aos seus propósitos retóricos.

Entenderam que o gesto dela foi a prova de que ele é de uma ternura só. Entenderam que seu protagonismo foi um cala-boca nas feministas. Entenderam errado. Ou, admito, cada um compreende o momento como quer, porque a ideologia aceita tudo. Compreendi outra coisa.

Mais do que provar a sensibilidade do presidente, a atitude da primeira-dama serviu de contraste: ela demonstrou que não é preciso apelar ao politicamente incorreto, às bravatas, ao confronto, às palavras de ordem e ao chamamento à maioria, para convencer e dar esperança. Afinal, não foi ele quem disse que “as minorias teriam de se adequar à maioria”? Ela sugeriu outra coisa.

Compreendi também que, mais do que um cala-boca às feministas, o gestual delicado e sorridente de Michelle poderia ser lido como um cala-boca à militância grosseirona, botocuda, viciada em Vikings ou Game of Thrones, que bem queria tiro, porrada e bomba (sentido figurado e, vai saber?, real), se fosse possível.

Aliás, o desespero para capitalizar o discurso inclusivo e emocionante de atenção às minorias, como se ele pudesse servir de contraprova diante das recorrentes acusações, revela bem mais do que esconde. Ora, se Bolsonaro nunca tivesse se mostrado machista, autoritário, tosco, preconceituoso ou inconveniente, a fala de sua mulher não chamaria a atenção. Sua atitude teve destaque justamente porque ninguém, nem os mais fanáticos, esperavam por essa. Esperavam o comportamento de costume.

Michelle Bolsonaro disse muito com pouco. Sem pronunciar palavra, falou mais alto e atingiu maiores distâncias éticas e políticas que Mourão. Falou bem aos surdos, que certamente entenderam; falou bem a todos os outros, que provavelmente entenderam. Resta saber se terá conseguido se comunicar também com os surdos ideológicos, com os que fazem ouvidos moucos à tolerância política, mais acostumados a gritar que a ouvir, mais propensos aos tempos de guerra que aos momentos de paz.

 

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