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Tarsila do Amaral 1: a artista do século e seu plano

Abaporu, obra de Tarsila do Amaral (Foto: Divulgação) (Foto: )

O Masp de São Paulo abriu uma exposição monumental sobre Tarsila do Amaral.

Não é o primeiro museu de grande importância a fazer isso recentemente. O Museu de Arte Moderna de Nova York montou uma exposição da mesma artista no ano passado. E considerou a pintora tão importante que acabou pagando um preço alto para comprar uma das telas. Raramente faz isso, mas não havia alternativa. Aquela a quem se dirigem olhares cada vez mais relevantes na arte em todo o planeta escapara do crivo da instituição. A compra sanou a falha de percepção.

Claro, a compra também chamou a atenção do mercado. A produção relevante da artista é bastante limitada. Não apenas pela pequena quantidade de obras disponíveis, mas por um reconhecimento centrado num período claramente delimitado de sua produção.

Ah, sim. A artista é brasileira, algo também meio na contramão dos tempos. Nas últimas quatro décadas a economia brasileira está em declínio: passou da posição de economia que mais crescera no mundo inteiro durante o início do século 20 para um caso crônico de paralisia. Do ponto de vista político, aproximamo-nos do folclore. Cinquenta anos atrás a Bossa Nova era uma arte de padrão mundial – hoje, o leitor que avalie.

O contraste entre o processo geral de queda da imagem nacional no mundo e o caso particular de ascensão torna ainda mais relevante a pergunta fundamental: onde foi que Tarsila do Amaral acertou para tocar na sensibilidade mundial deste momento em que estamos tão desencontrados dela?

Filha de um empresário ferroviário rico a ponto de ter várias fazendas, cresceu entre uma delas e a cidade de São Paulo que se globalizava por dentro com seus milhares de imigrantes. Seguiu o padrão da classe: colégio interno na adolescência, viagem para a Europa com 16, casamento aos 18, filha com 20 e vida de mãe em fazenda.

A primeira ruptura com o padrão aconteceu quando tinha 27 anos. Separa-se do marido, muda para São Paulo com a filha. Começa a estudar pintura com Pedro Alexandrino. O professor falava com sotaque caipira; era amigo de Almeida Junior, pintor por excelência do caipira paulista; apoiado pelo crítico de arte Monteiro Lobato, que, entre outras, acabava de se destacar com uma pesquisa sobre o Saci.

Uma pequena fração deste universo aparece timidamente nos desenhos e esboços da estudante Tarsila: desenhos de mulas das tropas e bois da fazenda, esboços de um ou outro empregado. Já os primeiros óleos refletem a formalidade acadêmica e social do mestre: naturezas mortas (a especialidade de Alexandrino) e paisagens.

Nem mesmo uma estadia de dois anos na Europa, entre 1920 e 1922, altera o rumo dos conteúdos. Faz curso de pintura na Academie Julien de Paris, outro centro de formação acadêmica. Nus e paisagens constituem o tema de seus trabalhos.

Volta para São Paulo em junho de 1922 – quatro meses depois da Semana de Arte Moderna. Recebe uma penca de margaridas de Mario de Andrade. No dia seguinte recebe a visita de Anita Malfatti, outra aluna de Pedro Alexandrino. As duas pintam as margaridas.

A explosão começa. Tarsila passa a conviver quase diariamente com Anita, Mario de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia. Discutem e praticam arte o tempo todo. A atmosfera frenética do momento foi assim definida por Menotti del Picchia em sua conferência durante a Semana de 22:

“Pela estrada de rodagem da Via Láctea os automóveis dos planetas correm vertiginosamente. Bela, o Cordeiro do Zodíaco, perseguido pela Ursa Maior, toda dentada de astros. As estrelas tocam o jazz band de sua luz, ritmando a dança harmônica das esferas. O céu parece um imenso cartaz elétrico, que Deus arrumou no alto, para fazer reclame de sua onipotência e sua glória. (…) Aos nossos olhos riscados pela velocidade dos bondes elétricos e dos aviões, choca a visão das múmias eternizadas pela arte dos embalsamadores. Cultivar o helenismo como força dinâmica de uma poética do século é como colocar o corpo seco para governar uma república democrática onde há fraudes eleitorais e greves anarquistas”.

Nesta definição a ruptura vem da emergência no discurso de símbolos associados à técnica (aviões, estradas de rodagem, cartazes elétricos, etc.) que se contrapõem ao milenar ritual ligado à natureza e o cosmos, com suas repetições míticas da renovação e manutenção da vida (os astros, a dança das esferas). O choque vem de uma nova hierarquia, com a completa inversão de valor entre os símbolos do sagrado, da ordem universal, e aqueles da construção humana, do fabricado.

O narrador anuncia um mundo regido pela técnica num lugar dominante. Tão dominante que nele Deus passa a ser apenas mais um elemento da realidade publicitária, um autor de reclames de sua mercadoria perdido na nova era. Poucos arautos da tecnologia informática, a versão novidadeira dos anos recentes, ousaram tanto.

Esta ordem de coisas colocaria o artista frente à opção radical de se deixar morrer acorrentado ao antigo ideal de beleza ou apresentar-se com os “olhos riscados pela velocidade dos bondes elétricos e dos aviões”, aderindo a uma nova noção de arte.

Este olhar para algo que é novo e que emerge tinha um paralelo fundamental naquele tempo: a noção de inconsciente, formulada por Freud na virada para o século 20. Desde o século 18, com o Iluminismo, até aquele momento, todo o relevante da vida humana fora pensado como derivado da razão e da consciência – o restante seria primitivo ou irracional.

A mudança trazida pela noção de inconsciente foi tremenda, com uma inversão de sinais tão radical quanto a do narrador modernista. Resumindo seus conhecimentos na série de conferências de 1918 publicadas com o título de “Introdução à Psicanálise”, Freud foi direto:

“Nos sintomas de neurose obsessiva, representações e impulsos surgem, sem que o paciente saiba de onde. Mostram-se refratários a todas as influências da vida normal e são considerados pelo paciente como energias onipotentes, chegadas não se sabe de onde como espíritos imortais, que se mesclam à vida humana. Neste quadro, somos obrigados a reconhecer um claríssimo indício da existência de uma instância particular da vida anímica, isolado de todo o restante da mesma. Tais sintomas e representações conduzem infalivelmente à convicção da existência do inconsciente. Por esta razão a psiquiatria clínica, que só reconhece a psicologia da consciência, não sai do apuro a não ser declarando que tais manifestações são apenas produto de degeneração”.

O termo “degeneração” era um dos mais suaves empregados contra o autor da noção. Como o próprio Freud notou sobre a moralidade dominante de sua época, “todo mundo concordava que o sentido de ‘sexual’ se assemelhava ao de ‘indecente’.” Em tal ambiente ele dizia com clareza:

“O estudo da vida sexual da criança nos revela claramente algo que defini com o conceito de libido. Com tal palavra designamos aquela força na qual se manifesta o instinto sexual, análogo àquele da busca de alimentos”.

As descobertas de Freud a colocar a libido e a vida sexual como centro do processo psicológico, que entendia a partir da tensão entre a consciência e o inconsciente:

“Podemos imaginar o sistema do inconsciente como uma grande antecâmara na qual se acumulam, como seres vivos, todas as tendências psíquicas. Esta antecâmara se liga a ouro cômodo menor, uma espécie de salão, no qual habita a consciência. Mas junto à porta que comunica esses ambientes há uma sentinela que inspeciona todas e cada uma das tendências psíquicas, impõe sua censura e impede que entrem no salão tudo que for de seu desagrado. (…) As tendências rechaçadas pelo vigilante não podem se tornar conscientes, por isso as qualificamos de reprimidas”.

Freud encontrou uma maneira de contornar esta barreira: fazer análise dos sonhos, produtos inconscientes por excelência. Assim criava uma nova ligação fundamental na psique – mesmo sem ter a melhor avaliação de seu precioso auxiliar. Percebeu que os sonhos tinham uma linguagem, mas a classificou da seguinte forma:

“Esta forma expressiva retrocede a estágios muito pretéritos de nosso desenvolvimento intelectual, ou seja, a linguagem figurada, as relações simbólicas e talvez a condições que existiram antes do desenvolvimento da linguagem abstrata. Nessas condições consideramos arcaico ou regressivo o gênero de expressão elaboração onírica”.

A soma dessas duas visões de ruptura – a estética moderna e a descoberta de um novo contato da consciência com o inconsciente — ajuda a entender a completa transformação da pintura e da vida de Tarsila do Amaral em poucos meses do ano de 1922. “As margaridas”, primeira obra da nova era, já trazia uma nova palheta de cores, que mal e mal era contida nos quadros anteriores. Em outubro deste ano ela já estava produzindo retratos modernistas de Mario e Oswald de Andrade, nos quais vinha à tona uma nova forma de encarar a pintura.

Mas não foi só arte. Tarsila começou um tórrido romance com Oswald de Andrade. Os dois mudam para Paris (a filha, Dulce, foi deixada num colégio interno). Juntaram-se a um grupo de intelectuais muito relevante, que incluía o pintor Fernand Léger, o poeta Blaise Cendras, o multiartista Jean Cocteau e o músico Eric Satie.

Sim. Tarsila parecia viver como os modernos com os olhos riscados pela velocidade. Sim, a repressão dos instintos dava lugar a uma sexualidade ativa e sem preocupação com as convenções sociais – a moralidade que seguira até a véspera parecia tão antiga quanto as múmias embalsamadas das convenções do belo. Mas algo extraordinário se passava. Rompidos todos os véus, ela escrevia contrita para seus pais logo depois da chegada a Paris:

“Sinto-me cada vez mais brasileira. Quero ser a pintora da minha terra. Como agradeço ter passado na fazenda a minha infância toda. As reminiscências deste tempo estão se tornando cada vez mais preciosas para mim. Quero ser, na arte, a caipirinha de São Paulo, brincando com bonecas no mato, como neste quadro que estou pintando”.

“A Caipirinha” é um quadro de 1923, assim explicado pela autora:

“Aproveitei uma recordação de criança. Costumava brincar quando era pequena com um matinho que crescia perto do muro. Cortava aquilo, era muito flexível, e ia fazendo uma boneca. Fazia os braços, ia fazendo uma sainha”.

Mas tal objetivo de uma ligação com a terra – o mesmo de Pedro Alexandrino, Almeida Junior ou Monteiro Lobato – já não se expressava pelo retrato mimético do mundo exterior. O quadro era agora uma reordenação do inconsciente, da vida interior, em busca de um espectador capaz de se conectar com esta visão elaborada num quadro. A linguagem era onírica e com a força do infantil – mas provocou reações que não tinham nada de “arcaico” ou “regressivo”.

Os primeiros a se encantar com a expressão interior da caipirinha foram os grandes artistas com os quais agora convivia – o que não é exatamente algo simples de ser explicado. No momento da explosão criativa Tarsila do Amaral passou a produzir também quadros que empregavam as técnicas modernistas: fazia composições cubistas abstratas, ensaiava o emprego de cores primárias e formas geométricas. Com isso poderia ter sido mais uma da escola moderna.

Mas o que realmente encantou foram as visões do Brasil: a expressão interior da caipirinha ressoou no grupo dos vanguardistas. Em novembro, quando Tarsila decidiu voltar para sua terra, o encantamento chegou a um ponto inusitado: Blaise Cendras resolveu conhecer o país. Não exatamente o dos cartões postais, mas aquele da imaginação de Tarsila do Amaral.

Um programa cuidadoso foi armado. Incluía o carnaval no Rio de Janeiro, a semana santa nas cidades históricas mineiras, uma longa temporada na Fazenda Sertão. Haveria visitas às tentativas de imitar a belle époque nas capitais, mas isto não era o fundamental. Quando desembarca no Rio de Janeiro, em dezembro de 1923, ela foi bastante direta em seus propósitos, numa entrevista para o Correio da Manhã:

“Sou profundamente brasileira e vou estudar o gosto e a arte de nossos caipiras. Espero, no interior, aprender com os que não foram ainda corrompidos pelas academias”.

O propósito era inteiramente contrário ao plano original dos modernistas, de produzir com “olhos riscados pela velocidade dos bondes elétricos e dos aviões”. Galvanizou o modernista Blaise Cendras. Colocou no grupo o apaixonado Oswald de Andrade, que acabara de produzir “Memórias Sentimentais de João Miramar” em ritmo de jazz band. Ganhou a adesão de Mario de Andrade, que tinha foco o urbano anarquista de “Pauliceia Desvairada”. A amiga Olívia Guedes Penteado organizou as viagens.

Uma obra grandiosa começava a nascer.

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