Seja pelas diferenças entre a nossa formação nacional e o resto do continente, seja pelas dimensões do Brasil, eu não diria que estamos dando a devida importância ao cataclisma humanitário na Venezuela. Há um certo frenesi, isso sim me parece inquestionável, porém nada capaz de gerar a merecida carga de empatia, levando-se em conta a gravidade do momento. E digo isso mesmo reconhecendo a gama de percalços por aqui, como as constantes crises provocadas pelos filhos do presidente Jair Bolsonaro e o início da discussão sobre a reforma da Previdência.
Todavia, percebe-se um fenômeno ainda mais digno de crítica entre nós, capaz não apenas de ir ao encontro desse descaso como de transcendê-lo. Refiro-me ao tom indulgente adotado pela esquerda e seus simpatizantes quando se trata de Nicolás Maduro.
Antes de prosseguir, à guisa de estabelecer conexão com a realidade e em consideração aos mais de 50 mil migrantes venezuelanos que cá estão atrás de comida, saúde e segurança, lembro que Maduro cerceia os seus — isso quando não os persegue, encarcera ou mata. Que apoderou-se do Judiciário e do sistema eleitoral venezuelanos. Vale lembrar também que, graças ao chavismo, a Venezuela deixou de ser uma nação próspera para conviver com uma inflação de 1 milhão por cento no ano passado (projeção de 10 milhões por cento este ano). Que o quilo da carne custa o equivalente a um salário mínimo e que em média a população perdeu mais de 10 quilos nos últimos 12 meses. E, por fim, que, além de ser sustentado por militares, tudo indica mancomunados com o narcotráfico, Maduro estabeleceu e armou milícias para defender seu governo. Ambos, exército e milícias, inclusive já abriram fogo contra civis, provocando fatalidades.
Dado um cenário tão medonho, considerando que o último pleito teve um índice de abstenção acima de 50% e não contou com um só candidato da oposição, era de se imaginar que não houvesse maiores contendas a respeito da legitimidade do regime chavista e o dever moral de apoiar o povo venezuelano. Tampouco alguém se atreveria a contestar o fato de que a Venezuela sofre sob o jugo de uma ditadura imposta por Nicolás Maduro.
Era de se imaginar, contudo, não é o que se vê.
Bem ao contrário, não falta quem tergiverse ao mencionar o verdugo bolivariano. Há até quem compre a já bolorenta teoria conspiratória que dá conta de um suposto interesse americano em influenciar governos na América Latina, como se estivéssemos em meados do século anterior. Mas o que estou dizendo? Acima de todos os pigarreios, há até mesmo quem busque equiparar a legalidade da oposição venezuelana com a do ditador sanguinário.
Pois, honestamente, eu não poderia dar menos importância para as opiniões de tipos como Gleisi Hoffmann, Carlos Zarattini, Orlando Silva, Roberto Requião e vacas sagradas do PSOL. Se são movidos por excesso de obtusidade, oportunismo político ou a simples falta de empatia, não faz diferença. No fim das contas, são visões de mundo moralmente incompatíveis com a minha. Entretanto, explicam à perfeição o porquê do atual cenário político e o resultado das últimas eleições.
Não é de hoje que a esquerda enfada a sociedade com uma espécie de monopólio do bom-mocismo. Nascem daí, como se afrontas fossem, essas manifestações grotescas de boa parte dos bolsonaristas que diariamente vemos nas redes sociais. Apesar disso, o prejuízo ao debate imposto por tamanha amolação perde com folga para a inconsistência entre esse mesmo estereótipo e a defesa de tiranos como Nicolás Maduro.
Assim, pergunta-se, e não sem razão: quem é a esquerda para falar de Trump quando apoia um ditador? Quem é Marcelo Freixo para posar como paladino da moral se o seu partido reiteradamente se posiciona ao lado de um opressor? Como Gleisi Hoffmann ousa falar em reforma draconiana para os aposentados se beija a mão de um líder capaz de matar os seus de fome? Que condição tem essa turma, afinal, de falar grosso sobre o que é certo e o que é errado?
Alguém poderá argumentar que existem inconsistências para todos os gostos na nossa cena política. E não estará errado. Basta ver o atual governo, eleito com um discurso quase virginal e já envolvido em casos potencialmente graves, para dizer o mínimo.
De todo modo, se a atual administração reúne totais condições para patinar muito ainda, tanto por conta de escândalos quanto por simples incompetência, seu eleitor pode ficar sossegado. Caso se arrependa pelo voto dado, poderá contar com o radicalismo e a postura desumana da esquerda para absolvê-lo da sua malfadada escolha.