Confesso a minha parcialidade. Claro, com isso não me refiro ao fato de usar este espaço para emitir opinião. Afinal, é justamente esse o meu papel — mesmo que muitos ainda não saibam distinguir matéria jornalística de coluna ou editorial. Não, a parcialidade neste caso está ligada ao meu comprometimento com a coerência e, talvez tão importante quanto, a jamais me preocupar em aliviar para este ou aquele governo. Não por acaso, foram inúmeras as ameaças que recebi por conta das críticas que fiz ao PT enquanto o partido esteve no poder.
Considerando ainda que brevemente o óbvio, a rejeição inequívoca da esquerda pela sociedade e a condição de seu maior líder — esta verbalizada de maneira eloquente por Cid Gomes —, fica a pergunta: por que cargas-d’água eu deveria me comportar de maneira diferente agora?
Não devo.
A verdade é que nem durante os meus momentos de maior espanto ao longo da campanha, quando os indícios a respeito da arapuca populista em que o país estava se metendo foram ficando claros e o baixíssimo nível moral, ético e intelectual da turma apontada como redentora da nação grassavam para quem quisesse ver, imaginei um cenário tão medonho como o de agora.
Já era de se esperar, não houve tanques na rua. Bobajadas como “feliz 1964”, recitadas durante a virada do ano, não faziam e continuam não fazendo o menor sentido. Para além do terrorismo eleitoral e da manipulação retórica, tão nocivos e passíveis de críticas à direita quanto à esquerda, estava na cara que o Brasil não corria riscos reais de voltar a ser uma ditadura militar.
Contudo, uma constatação verdadeiramente terrível começa a ganhar corpo. Desta vez, um cenário merecedor de atenção: elegemos pessoas incapazes de tocar em frente o país. Ponto.
Compramos a tese de que bastava ter um líder na área econômica. De que, mesmo grotesca, a narrativa ginasial destilada durante a campanha não passaria disso, uma narrativa ginasial. Catarse compreensível após tantos anos com a esquerda no poder e o fato de o PT ter conseguido alcançar o segundo turno.
Pois erramos.
Digo, já erramos. Não se trata mais de conjectura.
Ou alguém em sã consciência crê na capacidade do presidente em enfrentar e aquietar sua prole? E na hipótese de um Carlos Bolsonaro ciente do seu papel, que é tão somente o de vereador no Rio de Janeiro, distante do governo e sem causar atritos desnecessários nas redes sociais? É razoável?
Sem falar na vastidão de episódios envolvendo laranjas e o inadequado uso de dinheiro público que brota dia sim, dia seguinte também no coração do PSL — partido, vale lembrar, do presidente e cuja bancada no Congresso impressiona mais pela falta de decoro e inteligência emocional do que por outra coisa.
Muito bem, se ainda havia quem pusesse a mão no fogo em nome do bolsonarismo, talvez tenha começado a repensar seu posicionamento a partir dos áudios trocados entre o ex-ministro e aliado Gustavo Bebianno e o presidente, revelados hoje pela revista Veja.
Para começo de conversa, é inconcebível que, às vésperas do início de um debate tão importante como o da reforma da Previdência, a pauta seja essa. Pior que isso, só mesmo o fato de que ela foi plantada pelo próprio governo. Depois, constatar a obtusidade do mandatário quando se mete a discutir semântica, negando ter “conversado” quando de fato conversou. Quero dizer, passaram meses vangloriando-se pela habilidade demonstrada no uso da tecnologia e das redes sociais com fins eleitoreiros e agora surgem com uma ginástica argumentativa desse caibre?
Só o tempo dirá o mal que Carlos Bolsonaro fez ao país, mas este escriba não sonha em passar a mão na cabeça do presidente. Jair Bolsonaro pode ser um pai frouxo ou um pai esperto. Pode ser amalucado ou mentiroso. Perverso ou apenas oportunista. Seja como for, não temos ainda dois meses de governo completos e o quadro já preocupa.
Otimista, alguém pode tentar ver o copo meio cheio e considerar a sorte que temos pelo fato de o PT e a esquerda estarem tão fragilizados a ponto de ainda não terem sentido o gosto de sangue na água.
E precisa?