“Descobrimos que exatamente a doutrina que é vista como a mais ultrapassada é a única salvaguarda das novas democracias da terra. Descobrimos que a doutrina aparentemente mais impopular é a única força do povo. Em suma, descobrimos que a única negação lógica da oligarquia estava na afirmação do pecado original. Eu sustento que isso acontece em todos os outros casos”. (G. K. Chesterton)
Sempre que me perguntam o que penso ser necessário para recuperar a educação de nosso tão vilipendiado país, a primeira coisa que me vem à cabeça, e o que sempre respondo, é que precisamos de uma profunda refundação de nossa cultura. Precisamos recuperar os valores que formaram nossa civilização e transmiti-los às novas gerações; um trabalho longo e árduo, mas fundamental. Dentre os valores que penso serem imprescindíveis, estão os valores históricos, biográficos e culturais, que, dominados por interpretações criticistas – marxistas em sua base –, separaram a história de modo maniqueísta e estanque, reduzindo tudo tão somente a uma disputa entre opressores e oprimidos.
Tal reducionismo maculou as bases de nossa tradição cultural, que, por paradoxal que seja, é responsável por nossa imaginação moral, por nossa visão de mundo e pelo modo como construímos nossas relações. Somos um país construído, basicamente, pela junção de três tradições que, de modo simbiótico, formaram a cultura brasileira: europeia (ou judaico-cristã), indígena e africana. Esses três povos contribuíram indelevelmente para nosso modo de ser, cada um à sua maneira, cada qual mesclando, de modo definitivo, o nosso caráter. Como diz Gilberto Freyre, numa passagem de Casa-grande & Senzala que não canso de repetir:
“O que se sente em todo esse desadoro de antagonismos são as duas culturas, a européia e a africana, a católica e a maometana, a dinâmica e a fatalista encontrando-se no português, fazendo dele, de sua vida, de sua moral, de sua economia, de sua arte um regime de influências que se alternam, se equilibram ou se hostilizam. Tomando em conta tais antagonismos de cultura, a flexibilidade, a indecisão, o equilíbrio ou a desarmonia deles resultantes, é que bem se compreende o especialíssimo caráter que tomou a colonização do Brasil, a formação sui generis da sociedade brasileira, igualmente equilibrada nos seus começos e ainda hoje sobre antagonismos”. (grifo meu)
Evidente que há, na colonização brasileira, um elemento de dominação, de supressão das culturas indígena e africana pela europeia, das religiões animistas e de matriz africana pelo cristianismo. Ninguém nega isso. No entanto, além de não ser possível remover esse elemento dominante após tantos séculos, também não podemos negar que mesmo essa cultura dominante não permaneceu pura, mas está absolutamente permeada de elementos das culturas dominadas. A aculturação é, sempre, em maior ou menor grau, uma via de mão dupla. Desse modo, as culturas e religiões europeias, indígenas e africanas serão entrecortadas por influências mútuas, formando o Brasil.
Mas não podemos rejeitar o fato de que a principal influência de nossa cultura é o cristianismo – ou a tradição judaico-cristã. Negar isso ou buscar uma recuperação idealizada das culturas dominadas, através de um criticismo ressentido, é simplesmente aniquilar a cultura brasileira para colocar, em seu lugar, outro tipo de colonialismo, o ideológico, que tem o conflito como seu principal instrumento de dominação. Os valores que nos constituíram (e ainda constituem) como nação devem ser preservados, sob a pena de perdermos nossas principais referências. Aqueles que, de suas cátedras universitárias, demonizam tudo o que se relaciona ao elemento judaico-cristão, não querem outra coisa senão, à guisa de uma experiência utópica, destruir os laços que solidificam nossa estrutura cultural, a fim de implantar uma sociedade pretensamente sem preconceitos ou distinções. O problema é que isso minará os alicerces de uma tradição milenar sem ter nada concreto para substituí-la. O risco de aniquilação é gigantesco.
Para dar um exemplo, uma das bases da cultura ocidental, de profunda influência judaico-cristã, é a noção de imperfeição humana, solidificada pela doutrina do pecado original. É o apóstolo Paulo, na Bíblia, quem a formula:“Portanto, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso que todos pecaram”. (Romanos 5,12)
Não precisamos concordar com o conceito para percebermos que, do ponto de vista prático, há alguma verdade nele. Somos, mesmo, mais atrapalhados do que gostaríamos; mais erramos do que acertamos, mais magoamos do que alegramos, mais produzimos e sofremos o mal do que o bem. Como diz a fábula de Esopo sobre os bens e os males:
“Sempre mais fracos, os Bens, sendo perseguidos pelos Males, subiram ao céu onde perguntaram a Zeus como deveriam comportar-se com os homens. Zeus lhes disse que deveriam aproximar-se dos homens não todos juntos, mas um de cada vez. Por isso, os males, por estarem mais perto dos homens, se achegam a eles em grupos, enquanto os bens, descendo do céu, o fazem aos poucos”.
Esopo, que viveu 500 anos antes de Cristo, na Grécia, e, até onde se sabe, não era judeu, reconheceu que o sofrimento é uma realidade muito mais constante no ser humano do que a felicidade; que a dose de desconforto em nós produzida é superior à paz sempre almejada. Não somos, em geral, maus o suficiente para que nossa maldade seja patente, nem bons o suficiente para que vivamos livres de percalços. Há em nós um componente de imperfeição que nos angustia, porém nos convida à prudência. Essa herança foi sedimentada pelo cristianismo. E apesar de fomentar, por séculos, um certo de desprezo pela vida terrena, foi responsável pela humildade que fundamentou, pacientemente, nossa riquíssima tradição cultural. Como diz o historiador Jean Delumeau, em sua obra Sin and Fear – The Emergence of a Western Guilt Culture – 13th – 18th Centuries:
“(…) a espiritualidade medieval também foi caracterizada pela admiração ao universo (particularmente forte em São Bernardo) e otimismo escatológico. Visto por este prisma, o desprezo pelo mundo funcionava menos como uma teoria do que como um exercício ou diretriz à humildade. Se denegrir o mundo temporal foi considerado uma atitude necessária – a monges que aspiravam a vida eterna e um amor supremo a Deus –, ela ainda não os impediu de se tornarem homens de letras, e promover o ‘século do Renascimento (XII)’, ou expressar o interesse pela medicina”. (tradução minha)
A perseverança é fruto dessa humildade, mesclada à esperança de que a humanidade não está à deriva. De que fomos criados para um fim nobre: a reconciliação e comunhão com Deus. Tal finalidade passa pelo cumprimento dos dois maiores mandamentos bíblicos: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. É nisso que se encontram as bases de nossa civilização. E se, por vezes, tais convicções suscitaram guerras e males, não é porque são nocivas em si mesmas, mas justamente porque somos falhos em submetermo-nos a elas com humildade. No entanto, não deixam de ser princípios norteadores para os quais sempre devemos voltar.
Mais uma vez repito, paciente leitor: não é preciso concordar com tais afirmações, desde que tenhas em mente que esse é o fundamento de nossa cultura; e não é possível substituí-lo sem que a sua estrutura sofra um abalo de morte. Viver no ocidente significa compreender essa estrutura e saber que dela dependem a ordem que nos mantém unidos. Isso não significa, repito também, que outras culturas ou religiões não têm lugar por aqui, que não possa haver uma convivência pacífica entre visões de mundo diferentes – antagônicas até. Entretanto, a compreensão dos limites de cada um, buscando respeitar aquilo que é majoritário, faz parte do fundamento democrático, inclusive, do Ocidente moderno. E isso também não significa que essa tradição seja imutável – o que, obviamente, esbarraria num fundamentalismo tão destrutivo quanto seu abandono. Toda tradição só sobrevive se for capaz de adequar-se às demandas que surgem e, ao mesmo tempo, preservar seus fundamentos.
Nesse sentido, educação é, sobretudo, transmissão de legado. É tradição. É cultura. Se as próximas gerações forem alimentadas pelos valores que formaram a nossa cultura, aprenderão a amar o Brasil com tudo o que há de belo e contraditório, bem como a respeitar a história e a cultura que nos fez uma nação sólida diante de tantos percalços. Descobrir-se parte dessa tradição, como herdeiro e transmissor desse legado, é uma experiência enriquecedora, que foi tirada de nossas crianças e jovens, dando lugar ao tal “pensamento crítico”, que a tudo questiona e nada ensina. Urge voltar às origens.