“Por isso nem a cor branca, nem a cor preta no homem produzem uma diferença de espécie e entre o homem branco e o homem preto não existe diferença de espécie; e não haveria diferença de espécie mesmo que déssemos um nome diferente a cada um”. (Aristóteles, Metafísica)
No último domingo (03/06/2018), testemunhamos uma das maiores bizarrices criadas pela estupidez humana. Fabiana Cozza, conhecida e reconhecida cantora paulistana, dona de uma belíssima voz (que lembra a divina Clara Nunes), comunicou, em sua página no Facebook, que renunciou ao convite para interpretar Dona Ivone Lara no musical em homenagem à Grande Dama do Samba, que morreu em 16 de abril de 2018. O motivo não poderia ser mais grotesco: segundo militantes radicais (sobretudo feministas) – cuja única função no mundo é fazer do ressentimento uma arma – Fabiana Cozza é muito branca para o papel; e isso tiraria a oportunidade de uma cantora “negra retinta” (termo usado por elas) protagonizar a vida de Dona Ivone, que era, de fato, mais escura que Cozza.
Não importa se Fabiana Cozza tenha sido a única convidada para o papel (os demais foram selecionados via audições) por conhecer como poucos o repertório de Dona Ivone Lara; não importa se era amiga da família há mais de 20 anos; não importa se a própria cantora, negra, tem uma identificação inegável com a homenageada e com o espetáculo – recentemente fez uma série de shows em homenagem à Dona Ivone. Para os censores das redes sociais, Cozza está tomando o lugar de outra cantora, que, ainda que não tenha a mesma capacidade para o papel, é “negra retinta”, e essa “categoria” precisa de representatividade (argh!). A produção do espetáculo se indignou; a família de Dona Ivone Lara se indignou – seu neto veio a público desculpar-se com a cantora; e a própria Fabiana Cozza, que também se diz militante, mesmo indignada acabou, com seu texto e renúncia, sustentando a patética reivindicação; perdeu trabalho e dinheiro. Mas pouco importa, os fiscais de melanina decidiram, está decidido – sob a pena de não darem sossego nunca mais.
Agora, o mais absurdo disso tudo, para mim, é que a tal reivindicação se pretende fundamentada num conceito – que, na verdade, é um pseudoconceito, pois não é científico, mas apenas um sentimentalismo especulativo. Trata-se do Colorismo – termo criado pela escritora e feminista Alice Walker, autora do best-seller A Cor Púrpura (1982), vencedor do prêmio Pulitzer de 1983, que virou filme em 1985, dirigido por Steven Spielberg e protagonizado por Whoopi Goldberg, Danny Glover e Oprah Winfrey. De acordo com Walker, no ensaio If the present looks like the past, what does the future look like?, presente no livro In Search of Our Mothers’ Gardens, “colorismo” é o “tratamento preconceituoso ou preferencial a pessoas da mesma raça, com base unicamente em sua cor”. O que ela quer dizer com isso? Que pessoas negras de pele clara (mestiços) sofrem menos racismo que os de pele escura; ou, quanto mais escura a pele, mais a pessoa é discriminada. Tudo isso baseado em quê? Em nada. Quando muito, em algumas experiências isoladas, nos Estados Unidos, onde, até o final da década de 1960, alguns estados (como a Virgínia) não permitiam, por lei, casamentos inter-raciais.
Como a militância brasileira adora importar ideologias e encaixá-las, a fórceps, por aqui, somos obrigados a lidar com essa esquizofrenia sentimentalista – fenômeno do século 21 – num país majoritariamente miscigenado.
Esses malucos ainda tentaram fazer uma comparação com o caso da atriz Zoe Sandana, que representou a emblemática Nina Simone, no cinema. Nesse caso ficou muito estranho, mesmo, pois não há, aparentemente, qualquer ligação da atriz, que também é bailarina, com a cantora. Mas, ainda assim, é uma completa sandice achar que escolheram Saldana por ser mais clara. Ora essa, tiveram até o trabalho de escurecê-la! Sem contar que Nina Simone é uma figura icônica e foi uma das maiores e mais radicais militantes negras da América – inclusive prejudicando sua carreira por isso. Por que tentariam clareá-la (escurecendo a atriz)? A escolha pode ter sido por “n” motivos, mas alegar discriminação é uma tolice sem tamanho.
Os argumentos são tão estapafúrdios que vale a pena reproduzir e comentar alguns trechos de um longo artigo que encontrei na internet, escrito num português tão horripilante que, desde já, caro leitor, peço perdão por forçá-lo a ler. Vamos lá:
Segundo o texto, “colorismo ou a pigmentocracia é a discriminação pela cor da pele e é muito comum em países que sofreram a colonização europeia e em países pós-escravocratas. De uma maneira simplificada, o termo quer dizer que, quanto mais pigmentada uma pessoa, mais exclusão e discriminação essa pessoa irá sofrer”.
Países pós-escravocratas? Trata-se do mundo todo, certo? Afinal de contas, todo o mundo já foi escravocrata em algum momento, inclusive o Brasil dos silvícolas. Só que não. A escravidão, para o Movimento Negro, é a escravidão colonial. Só ela importa. Inclusive aqueles países africanos nos quais a escravidão ainda é uma realidade, são solenemente ignorados. Ou seja, a boa e velha tática ideológica de tomar a parte pelo todo. O texto segue:
“O colorismo dificulta e até mesmo impede completamente o acesso de pessoas de pele escura a certos lugares da sociedade, o que consequentemente dana ou impede o acesso delas à [sic] serviços que lhes são de direito, enquanto cidadãos brasileiros”.
Tem algum exemplo? Claro que não. O mais importante é dar a impressão de que vivemos num apartheid, no qual negros são preteridos, perseguidos e têm os seus direitos – o seu “acesso a serviços” (?) – negados. Como se no Brasil, país assolado por oligarquias e pela corrupção, ter os seus direitos negados fosse “privilégio” das “negras retintas”. Não é. Mais um trecho e chega:
“Mas por que ter a pele mais clara traz privilégios para a pessoa afrodescendente, se ela ainda assim não será identificada como branca? Porque ela, mesmo sendo identificada como ‘negra’ pela sociedade racista, o que significaria que ela não poderia desfrutar dos mesmos direitos que uma pessoa branca, ainda assim é mais ‘agradável’ aos olhos da branquitude e deve/pode por isso ser ‘tolerada’ em seu meio. Esse é um aspecto muito importante no colorismo: a pessoa negra é tolerada, mas não aceita, pois aceitá-la seria reconhecer que a diferença é existente e que vencer o preconceito que se tem sobre essa ‘diferença’ tenha que ser vencido”.
A insistência por aceitação provoca vergonha alheia. “Tolerada, mas não aceita” é mais uma dessas afirmações impossíveis de provar, mas que causam um arrepio em qualquer vitimista em potencial. Evocar direitos abstratos e supostamente violados, e personalizar abstrações – branquitude? –, são artimanhas de quem não tem segurança para assumir a responsabilidade pela própria vida e pelas próprias demandas.
Ver esses movimentos dobrarem a espinha pedindo aceitação da sociedade que julgam racista, só mostra o quanto têm de evoluir para compreenderem que a liberdade é um direito radical, inegociável, e que toda essa militância em torno de protagonismo torna-se ridícula quando tudo o que desejam é receber o olhar benevolente de seus supostos algozes.
O primeiro cineasta negro americano, Oscar Micheaux (1884-1951), ao ver o filme de D. W. Griffith, O Nascimento de uma Nação (1915) – de forte conteúdo racista, no qual os negros, representados por brancos com o tal blackface, são retratados como seres brutais e selvagens –, não foi chorar para ninguém. Filmou, com pouquíssimos recursos, Within our Gates (1915), invertendo o discurso e mostrando a violência das leis Jim Crow e dos linchamentos. No Brasil da década de 1940, Abdias Nascimento (1914-2011), percebendo que negros praticamente não protagonizavam espetáculos, criou o Teatro Experimental do Negro; não para fazer militância identitária de gueto, mas para representar Shakespeare e Nelson Rodrigues.
Mas eles tinham um ponto: a realidade. Já a militância atual gosta mesmo é de se refestelar em teorias abstratas sem nenhum contato com a realidade – esta que, ao fim e ao cabo, se mostra sempre mais dura que seus delírios ideológicos. Veja um exemplo, caro leitor:
Alice Walker, a escritora feminista que cunhou o termo “colorismo” e se orgulha por militar pelas injustiçadas dessa terra, foi criticada por sua própria filha, por tê-la criado “para acreditar que as mulheres precisavam dos homens tal como um peixe precisava duma bicicleta”, e encorajado a nunca ter filhos – pois que a maternidade escravizava as mulheres. Rebecca Walker desabafou numa entrevista para o site DailyMail (em português, aqui):
“Há alguns dias, enquanto eu aspirava a casa, o meu filho entrou no quarto. ‘Mãe, mãe, deixa-me ajudar-te’, disse ele. As suas pequenas mãos agarravam-se aos meus joelhos e os seus enormes olhos castanhos olhavam para mim. Fui sobrepujada por uma enorme onda de felicidade. Adoro a forma como a sua cabeça descansa na curvatura do meu pescoço. Adora a forma como a sua cara entra num estado de concentração propositada quando o ajudo a aprender o alfabeto. Mas, acima de tudo, eu simplesmente adoro ouvir a sua voz dizer ‘Mãe, mãe’. Isso me traz à lembrança o quão abençoada sou. A verdade dos fatos é que eu quase perdi a oportunidade de ser mãe graças à educação que recebi por parte da minha mãe – uma feminista fanática. Ela era da opinião que a maternidade é a pior coisa que pode acontecer a uma mulher. A minha mãe ensinou-me que os filhos escravizam a mulher. Eu cresci a acreditar que as crianças eram nós amarrados à volta do teu pescoço, e para mim a ideia da maternidade poder tornar uma mulher mais feliz era um conto de fadas. O que eu descobri é que ser mãe tem sido a experiência mais recompensadora da minha vida”.
Isso me lembrou da recomendação do psiquiatra Jordan Peterson em seu livro 12 regras para a vida – um antídoto para o caos (Alta Books): “antes de criticar o mundo, mantenha a sua casa em ordem”.
É muito cômodo criticar a tudo e a todos sem um mínimo de compromisso ético para com as consequências de seus próprios atos.
Para terminar, faço ainda algumas observações:
Quem acompanha o meu trabalho, sabe que tenho retomado o contato com os primeiros militantes do Movimento Negro pós-abolição. Recentemente, lendo entrevistas e artigos de José Correia Leite, um dos fundadores da Frente Negra Brasileira, fiquei impressionado com a lucidez de seus propósitos à época. Em seus escritos, é fácil perceber três coisas importantes:
1) Os negros brasileiros, no início do século 20, sofriam discriminação racial abertamente, e isso aumentava a sua altivez e a sua vontade de superar as dificuldades, mas também aumentava a responsabilidade dos negros em relação a si próprios; 2) a militância negra era totalmente independente, tanto em termos políticos quanto em suas iniciativas.
Inclusive, não se furtavam de criticar aqueles que, em nome dos negros, só pensavam em seus próprios interesses. Num artigo publicado no jornal Alvorada – da Associação dos Negros Brasileiros (ANB) – em julho de 1947, Correia Leite critica os “livres pensadores de nossa grei”, que “só sabem tomar posição mediante vantagem”; e arremata:
“Nós não tememos tanto aqueles que são pusilânimes, mas sim os trânsfugas das demagogias baratas. Esses que são os candidatários do servilismo da politicagem. Os mistificadores de todos os matizes que, no vácuo das miragens chulas de suas ilusões, procuram atrair os negros no ortodoxismo de suas concepções arcaicas”.
Voltando ao caso Fabiana Cozza, pergunto: quem ganhou com todo esse terrorismo virtual? Ninguém. Nem as militantes, que passaram a ser taxadas de censoras ressentidas; nem a artista “retinta” que integrará o elenco, pois terá de enfrentar o rótulo de ter conseguido o papel só por ter da “cor certa” e não por seu talento; nem a produção do espetáculo, que correrá o risco de ter seu projeto prejudicado por irresponsáveis; nem o público, cuja lembrança desse triste incidente manchará a apreciação plena do espetáculo; e, por fim, nem a memória de Dona Ivone Lara, que carregará para a história essa mancha retinta de irresponsabilidade, do ressentimento e da injustiça.
Tristes tempos os nossos.
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PS.: Descobri que a autora do texto sobre colorismo é mestre em Filologia e Língua Portuguesa pela universidade de Hamburgo (Alemanha). O horror!