“Alguém disse: ‘Por que vós vos empenhais tanto em torno deste Homero? Vós não o entendeis de qualquer forma’. A isto eu respondo: tampouco entendo o sol, a lua e as estrelas; mas eles passam sobre minha cabeça e eu me reconheço neles, à medida que os vejo e que considero o seu curso espantoso e regular. Aí chego mesmo a pensar se alguma coisa realmente poderia vir a ser a partir de mim”. (Johann Wolfgang Goethe)
No verão de 1906, em uma pequena cabana em Maiernigg, na Áustria, o compositor Gustav Mahler (1860-1911) concluía a mais suntuosa e exigente sinfonia de todos os tempos: a Sinfonia n.o 8 em Mi bemol maior. Mahler descreveu o processo incomum (miraculoso?) de composição à sua esposa, Alma, em carta posterior: “Eu subi até a minha cabana com a intenção de me acalmar (pois estava com uma necessidade extrema de descanso na época) e reunir novas forças. Ao entrar naquele quarto muito familiar, o creator spiritus tomou posse de mim, me segurou em suas garras e me castigou por oito semanas, até que o trabalho estivesse terminado”.
Posteriormente, também disse ao seu amigo Schoenberg, pai do dodecafonismo, que era “como se toda ela me tivesse sido ditada”. Quando terminou o esboço, em 18 de agosto, escreveu ao maestro Willem Mengelberg: “É a maior coisa que fiz até agora… […] imagine que, de súbito, o universo começasse a vibrar e emitir sons. Não se trata mais de vozes humanas, mas do Sol e dos planetas girando”. Mahler sabia da importância do que tinha escrito, tinha consciência de sua missão.
Mahler foi um compositor visceral, um “homem”, nas palavras de Otto Maria Carpeaux, “de energia fanática”; um “intelectual cheio de saudade da certeza religiosa e sacudido por dúvidas martirizantes; oscilando entre furiosa avidez de viver e pessimismo doloroso”. Seu biógrafo, Michael Kennedy, diz que “cada uma de suas sinfonias é uma extensão de sua personalidade, uma exploração do seu próprio eu, e, no seu caso […], é impossível separar a música da vida do compositor, como se fosse uma atividade isolada”. Kennedy continua:
“A esposa de Mahler e muitos de seus amigos, mormente Schoenberg, descreveram-no como um santo. Não se referiram, podemos estar certos, a qualquer santo de vitral, mortificado e exangue. Os santos são endurecidos pelo sofrimento; são homens de aço, estoicos, fustigados pelo mundo e pelo seu próprio sentimento de pecado. Mahler era desse estofo; e, na exploração de sua obra, essa inflexibilidade de propósito e robustez de fibra não devem ser esquecidas”.
Desse modo, temos a Sinfonia n.o 8 como sua realização mais ousada. Conhecida como “Sinfonia dos Mil”, por conta da enorme exigência técnica – tamanho da orquestra e coral –, não se trata de uma composição ortodoxa, pois, em vez dos quatro movimentos habituais para sinfonias (consolidados entre os séculos 18 e 19), a Oitava tem “somente” duas partes e utiliza vozes em praticamente toda a sua duração – extensos 80 minutos, igualmente atípicos para uma sinfonia.
Para o vocal da primeira parte, Mahler utilizou o texto de um hino cristão do século 9.º, o Veni Creator Spiritus, atribuído a Rabano Mauro (780-856), arcebispo de Mainz, na Alemanha. Para a segunda parte, a inspiração foi ninguém menos que o imenso Johann Wolfgang Goethe e o fim da segunda parte de seu Fausto, cuja profundidade dos versos é descrita nas palavras de Carpeaux: “quem quisesse explicá-los todos deveria escrever uma enciclopédia do espírito humano”. Curiosamente, esse conjunto heterogêneo – um hino do século 9.º e um poema trágico do início do século 19 – tem um efeito imaginativo poderoso e, em termos de composição, Mahler estava perfeitamente ciente do que estava fazendo; e mais: o hino Veni Creator Spiritus não só era conhecido por Goethe, como também ele mesmo chegou a preparar uma tradução para o alemão. Em seu volume de aforismos Memórias e Reflexões, encontramos a seguinte máxima: “O divino cântico Veni Creator Spiritus é propriamente um apelo ao gênio; é por isso que ele também fala violentamente aos homens de intelecto e poder”. E Mahler era um desses homens.
Apesar de minha ligeira preferência pela Sinfonia n.o 2 – conhecida como Ressurreição – a Oitava é, sem dúvida, a mais ambiciosa aventura mahleriana.
Pois bem: estive, no sábado passado, 3 de março, no Teatro Municipal de São Paulo para a apresentação da Sinfonia n.o 8. Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, Coral Paulistano, Coro Lírico Municipal de São Paulo, Coral Infanto-juvenil da Escola Municipal de Música e os solistas Gabriella Pace, Rosana Lamosa e Raissa Amaral (sopranos); Ana Lucia Benedetti e Denise de Freitas (mezzo-sopranos); Fernando Portari (tenor); Lício Bruno (baixo-barítono); e Sávio Sperandio (baixo). Regência de Roberto Minczuk. Centenas de músicos e cantores reunidos para dar vida a essa obra de dimensões catárticas.
Mas essa não foi a primeira vez que assisti à Oitava. Em 2011, estive na Sala São Paulo para assisti-la com a Osesp, regida pelo maestro russo Gennady Rozhdestvensky (com 80 anos na época). Porém, saí frustrado. O maestro, quase imóvel, não conseguiu transmitir a poderosa carga emocional que a obra comporta – sim, os maestros são importantes. Se minha memória não falha, ele regeu sentado. Não o culpo, só não faz meu estilo. Simon Rattle ou o saudoso Giuseppe Sinopoli – morto prematuramente em 2001, aos 54 anos – são exemplos de maestros vigorosos.
Entretanto, no Municipal a coisa foi diferente. A condução competente e apaixonada de Roberto Minczuk – que tive a honra de conhecer na cerimônia de entrega da comenda Ordem do Mérito Cultural, do MinC, com a qual eu e ele (e outras 30 personalidades) fomos agraciados –, diante da orquestra e dos coros, concentrados e afinados, dando conta da dificílima dinâmica da obra, levou-me não só às lágrimas por várias vezes, mas a um êxtase tão intenso que, no gran finale apoteótico, perdi o fôlego por alguns instantes. Como diz Richard Wagner em seu ensaio sobre Beethoven, diante de uma “peça musical que verdadeiramente nos comove”, somos imersos num ambiente que “não o percebemos mais com a consciência, mas, ao contrário, com os olhos abertos, somos tomados por um estado que se assemelha, essencialmente, à clarividência sonambúlica”. Trata-se de uma experiência espiritual, de catarse (purificação das emoções), como diz Aristóteles.
Recuperado, pensei: “será possível que alguém veja um concerto como esse e saia da mesma maneira que entrou?” Como seria oferecer a um adolescente de hoje, desses que ouvem funk o dia todo, uma experiência como essa? Não acompanhado dos colegas ou levando a orquestra até a periferia, mas oferecendo a ele a experiência estética completa: desde a exuberância arquitetônica do Teatro Municipal até os avisos sonoros para que a ordem se estabeleça antes de iniciar o concerto. O efeito só pode ser comparado à experiência de conversão, à tomada de consciência de nossa finitude e – por que não? – dos nossos pecados.
Tal constatação nos coloca diante daquilo que o filósofo Eric Voegelin chamou de Consciência do Fundamento, a experiência de Participação (do grego metaxy) do ser humano na natureza divina de sua origem. E é exatamente dessa tensão que surge a Arte. Nas palavras do cineasta Andrei Tarkovski, em seu comovente Esculpir o Tempo: “A arte nasce e se afirma onde quer que exista uma ânsia eterna e insaciável pelo espiritual, pelo ideal”. Tais palavras foram, inclusive, reverberadas por Roberto Minczuk em sua entrevista para o Estadão a respeito da Oitava de Mahler:
“Mahler está falando daquilo que faz com que o ser humano procure uma igreja, ou seja, a crença na redenção humana. É essa possibilidade que faz com que as pessoas reconheçam a necessidade do espiritual, do infinito, de um mundo melhor. A ideia fundamental em toda a obra me parece ser acreditar na redenção do ser humano e isso é de fato o que todo mundo busca hoje”.
A alta cultura tem função pedagógica, pois nos ensina, como diz o filósofo Roger Scruton, “a viver como se nossas vidas importassem eternamente”. Ela carrega em si a Tradição, a longa estrada imaginativa percorrida pelo espírito humano em direção ao seu Criador. Não pode e não deve ser rejeitada ou menosprezada; deve ser acessível a todos pelo incentivo e pela educação.
Se a imensa maioria do povo brasileiro, que hoje mal sabe quem foi Carlos Gomes, não tivesse sido alienada da grande arte, da alta cultura, certamente a nossa situação seria outra. Se os intelectuais contemporâneos, traidores do povo e utopistas inconsequentes, em seu autoritarismo irresponsável, não tivessem espalhado, como os gafanhotos da praga bíblica, a mentira mais deslavada de todos os tempos, de que as culturas se equivalem (têm o mesmo valor), e que exigir superioridade de uma cultura sobre outra seria etnocentrismo, o processo educativo não teria se transformado em mera ideologização emburrecedora. Tal absurdo está claramente sintetizado na frase atribuída ao “Patrono da Educação Brasileira”, Paulo Freire: “Não há saber mais ou saber menos, há saberes diferentes”.
Se, por exemplo, a principal fonte para o currículo de Filosofia do ensino médio brasileiro não fosse o panfleto Convite à Filosofia, de Marilena Chauí (socialista e fundadora do PT) – que afirma que atribuir a alguém o status de culto é preconceito, uma vez que “todos os humanos são cultos, pois são todos seres culturais”; e que declarar a superioridade da alta cultura sobre a cultura popular é elitismo –, não estaríamos nesse quase intransponível abismo. Forçando-nos a equiparar o gênio ao diletante, o complexo ao simples, o belo ao feio, acaba por nos oferecer, em lugar do balé clássico, da ópera e de Michelangelo, a dança de rua, o funk e Romero Britto.
Não se trata de menosprezar a cultura popular, mas de fazer exatamente o contrário: de devolver à alta cultura o caráter civilizatório que ela merece. No sentido clássico do termo, “cultura” significa “cultivar o espírito” e “cultuar aquilo que é superior”; e isso está ao alcance de todos, não só de uma elite econômica, como querem nos fazer crer os reformadores sociais.
Cumpre a mim, como professor, lutar contra essa barbárie; cumpre a você, caríssimo leitor, compreender o meu apelo e fazer a sua parte; e cumpre a nós, cidadãos, recuperarmos a nossa liberdade de escolher o que é melhor para nós.