“Os brasileiros são entusiastas do belo ideal, amigos da sua liberdade, e mal sofrem perder as regalias que uma vez adquiriram. Obedientes ao justo, inimigos do arbitrário, suportam melhor o roubo que o vilipêndio; ignorantes por falta de instrução, mas cheios de talento por natureza; de imaginação brilhante, e por isso amigos de novidades que prometem perfeição e enobrecimento; generosos, mas com bazófia; capazes de grandes ações, contanto que não exijam atenção maturada, e não requeiram trabalho assíduo e monotônico; apaixonados do sexo por clima, vida e educação. Empreendem muito, acabam pouco. Sendo os Atenienses da América, senão forem comprimidos e tiranizados pelo despotismo”. (José Bonifácio de Andrada e Silva)
Uma das características mais marcantes da filosofia de vida de Benê, minha amada mãe, é a máxima que ouço desde criança – uma verdadeira síntese da vida prudente: “temos de ter o que falar, e nunca dar o que falar”. Mulher irrepreensível, minha mãe repetia inúmeras vezes seu axioma, sempre precedido de outra sentença de cunho mais, digamos, incisivo: “se alguém aparecer aqui na porta para falar de você, eu te pego”. Isso me fez ser alguém que sempre – pelo menos sempre que possível – pondera suas ações e afirmações, pois sei, desde pequeno, que “dar o que falar”, ter o nome envolvido em falatórios ou escândalos, não é boa coisa.
A semana se iniciou em meio a uma dessas celeumas que, não fosse o seu protagonista quem é, teria passado despercebida de todos – como passou tantas vezes. Não só porque tal figura ocupou uma das mais altas patentes do Exército Brasileiro, mas porque ganhou notoriedade nacional ao ser escolhida como candidato a vice-presidente do mais escandaloso – no sentido próprio, grego, do termo, de “armadilha”, “pedra de tropeço” (petras skándalou) – dos candidatos (pelo menos para a mídia e para seus adversário): Jair Bolsonaro. O protagonista da confusão foi o general Antônio Hamilton Mourão, ou General Mourão.
No dia 06/08, Mourão dava uma palestra na Câmara de Indústria e Comércio de Caxias do Sul (RS) e, num determinado momento, disse:
“Temos uma herança cultural, uma herança que tem muita gente que gosta do privilégio (…) Essa herança do privilégio é uma herança ibérica. Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena. Eu sou indígena. Meu pai é amazonense. E a malandragem (…) é oriunda do africano”, afirmou. “Então, esse é o nosso cadinho cultural. Infelizmente gostamos de mártires, líderes populistas e dos macunaímas.”
A partir daí, uma enxurrada de críticas invadiu a mídia tradicional e as redes sociais, denunciando racismo nas afirmações do general. A economista Miriam Leitão, em sua coluna n’O Globo, escreveu: “A declaração do general Hamiltom Mourão sobre as raízes brasileiras é toda ruim. É uma ofensa ao país como um todo […] Essa maneira como o general apresenta o país é o que parece: racista”.
Quem me conhece e/ou acompanha o meu trabalho, sabe do esforço que tenho feito, em meus artigos aqui, na Gazeta, em minhas palestras e em meu curso online O Brasil é um país racista?, no sentido de equacionar melhor o uso do conceito de racismo. Para mim, a discussão perdeu o sentido quando, ao não conseguirmos identificar os racistas de fato – aqueles que defendem a existência de raças humanas e atribuem determinadas características intrínsecas a elas –, acabamos por fazer de todos os brasileiros racistas em potencial; daí a expressão de que o país é racista. Perde-se a medida das coisas, acusa-se qualquer idiota de racismo, enquanto os verdadeiros racistas continuam sem a devida punição. E mais: há uma tendência, que ocorre quase sempre, de associar a afirmação de uma pessoa à sua opinião consciente. Por exemplo: as afirmações do general fazem dele um racista? Entre os mais radicais, principalmente aqueles à esquerda, sim. O jornalista Reinaldo Azevedo, em sua diatribe legalista, também asseverou: “General Mourão praticou crime de racismo”. Eu não creio nisso.
Digo do general Mourão o que disse de William Waack, em artigo publicado nesta mesma Gazeta do Povo: suas palavras desastrosas, inaceitáveis, não fazem dele, em minha maneira de ver, um racista a priori; seria preciso que ele se afirmasse como tal quando indagado – ou você não se lembra, caríssimo leitor, de nenhuma pessoa que dissesse, abertamente, não gostar de negros (ou índios, ou bolivianos)? Sim, elas existem no Brasil; são uma minoria cuja certeza de superioridade é sustentada à luz do dia. A tese do racismo cordial, apesar de endossada por praticamente toda classe falante, não me convence. A imensa maioria dos brasileiros abomina o racismo; e se alguém, por um acesso de raiva ou por pura estupidez, chamar um negro de “macaco” – o que configura, pelo artigo 140 do código penal, o crime de injúria racial – tal ato é passível de retratação. Não se pode rotular alguém de racista por isso.
No entanto, infelizmente, as afirmações do general Mourão ecoam, como mostrarei a seguir, muito fortemente, naquele racismo mais sórdido, eugenista, do século 19, apregoado por intelectuais como Raimundo Nina Rodrigues e Sílvio Romero.
Quando Mourão atribui a uma cultura determinadas características morais – sobretudo pejorativas – sem ter em mente que as qualidades morais são adquiridas pelo convívio, tropeça numa perigosíssima generalização. Os indígenas brasileiros eram heterogêneos, de etnias distintas – com culturas e costumes diferentes; o continente africano é uma imensidão – hoje dividido em 54 países – com os mais variados povos e suas mais diversas (e até rivais) culturas. Os ibéricos, formados por dezenas de povos – gregos, romanos, celtas, mouros, suevos, visigodos, judeus etc. –, como classifica-los? E mais: dizer que determinadas características, tão específicas como “malandragem”, “indolência” ou a “cultura do privilégio” sejam intrinsecamente associadas a culturas de tais ou quais povos, e passíveis de serem transmitidas a outro povo – ainda que oriundo daqueles –, formado em outro continente, com geografia e características climáticas diferentes, é algo que só seria possível geneticamente. Não há saída.
Raimundo Nina Rodrigues escreveu, em Os Africanos no Brasil (edição online, de domínio público): “Em torno deste fulcro — Mestiçamento —, gravita o desenvolvimento da nossa capacidade cultural, e no sangue negro havemos de buscar, como em fonte matriz, com algumas das nossas virtudes, muitos dos nossos defeitos”. (p. 20). Sílvio Romero falava da “barbárie do indígena e a inépcia do negro” (citado por Lilia Moritz Schwarcz em O espetáculo das raças, Cia das letras, p. 115). Arthur de Gobineau, o diplomata francês amigo de D. Pedro II (que rechaçava suas ideias, diga-se), ia ainda mais longe: “Nenhum brasileiro é de sangue puro, mas as combinações dos casamentos entre brancos, indígenas e negros multiplicaram-se a tal ponto, que as variantes de carnação apresentam-se inumeráveis e tudo isso produziu, tanto nas baixas quanto nas altas classes, uma degeneração do mais triste aspecto” (citado por Georges Raeders, em O conde de Gobineau no Brasil, CEC, p. 79-80).
Ou seja, os eugenistas do século 19 chegavam à mesma conclusão que Mourão – em termos culturais, inclusive; porém, atribuíam tal degeneração do povo brasileiro a causas genéticas. Para Nina Rodrigues e Sílvio Romero, a mestiçagem, com predominância pelo sangue branco, provavelmente resolveria o problema. Gobineau era taxativo: o povo brasileiro não tinha cura.
Mourão ainda tropeçou num completo desconhecimento – que alguns tentaram empurrar para o economista Roberto Campos, como autor da citação original – dos estudos antropológicos brasileiros. Gilberto Freyre, provavelmente o maior interprete do Brasil – relegado ao completo ostracismo pelos acadêmicos marxistas da Universidade de SP – por exemplo, inverte quase completamente as caracterizações apresentadas por Mourão/Campos. Em Casa-Grande & Senzala (Global), citando o historiador inglês Aubrey F. G. Bell, diz:
“O caráter português – comparação do mesmo Bell – é como um rio que vai correndo muito calmo e de repente se precipita em quedas de água: daí passar do ‘fatalismo’ a ‘rompantes de esforço heroico’; da ‘apatia’ a ‘explosões de energia na vida particular e a revoluções na vida pública’; da ‘docilidade’ a ‘ímpetos de arrogância e crueldade’; da ‘indiferença’ a ‘fugitivos entusiasmos’, ‘amor ao progresso’, ‘dinamismo’… É um caráter todo de arrojos súbitos que entre um ímpeto e outro se compraz em certa indolência voluptuosa muito oriental, na saudade, no fado, no lausperene. ‘Místicos e poéticos’ – são ainda os portugueses segundo Bell (o inglês que depois de Beckford melhor tem sentido e compreendido a gente e a vida de Portugal), ‘com intervalos de intenso utilitarismo […] caindo dos sonhos vãos numa verdadeira volúpia de proveito imediato; das alturas da alegria na tristeza, no desespero, no suicídio; da vaidade no pessimismo […] alternando a indolência com o amor da aventura e do esporte.” (p. 69)
Ou, ainda:
“Antes de Alexandre de Gusmão dar seu grito de alarme contra o regime de trabalho escravo em Portugal, atribuindo a essa instituição a indolência do português, sua lentidão e esterilidade, já [Nicolau] Clenardo salientara a extensão dos efeitos perniciosos do cativeiro sobre o caráter e a economia lusitana. Com a diferença de Alexandre de Gusmão diagnosticar um império já começando a desfazer-se de podre; Clenardo receitou-o pelos primeiros escarros de sangue. ‘Se há povo algum dado à preguiça, sem ser o português, então não sei eu onde ele exista… Esta gente tudo prefere suportar a aprender uma profissão qualquer.’ Tão grande indolência, à custa da escravidão: ‘Todo o serviço é feito por negros e mouros cativos. Portugal está a abarrotar com essa raça de gente. Estou quase a crer, que só em Lisboa, há mais escravos e escravas que portugueses livres de condição”. (p. 318)
Já Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, apresenta, a respeito do ibérico, uma mistura de indolência e oportunismo:
“Essa pouca disposição para o trabalho, ao menos para o trabalho sem compensação próxima, essa indolência, como diz o deão Inge, não sendo evidentemente um estímulo às ações aventurosas, não deixa de constituir, com notável frequência, o aspecto negativo do ânimo que gera as grandes empresas. Como explicar, sem isso, que os povos ibéricos mostrassem tanta aptidão para a caça aos bens materiais em outros continentes? ‘Um português’, comentava certo viajante em fins do século 18, ‘pode fretar um navio para o Brasil com menos dificuldade do que lhe é preciso para ir a cavalo de Lisboa ao Porto.’ E essa ânsia de prosperidade sem custo, de títulos honoríficos, de posições e riquezas fáceis, tão notoriamente característica da gente de nossa terra, não é bem uma das manifestações mais cruas do espírito de aventura?” (p. 46)
A respeito da suposta indolência indígena, é Padre Manuel da Nóbrega, o grande jesuíta, nas Cartas Jesuíticas (Itatiaia), quem nos orienta:
“Não se guerreiam por avareza, porque não possuem de seu mais do que lhes dão a pesca, a caça e o fructo que a terra dá a todos, mas somente por ódio e vingança, sendo tão sujeitos á ira que, si acaso se encontram em o caminho, logo vão ao pau, á pedra ou á dentada, e assim comem diversos animaes, como pulgas e outros como este, tudo para vingarem-se do mal que lhes causam, o que bem deixa ver que não tomaram ainda aquelle conselho evangélico de pagar o mal com o bem.”. (p. 90-91)
Por fim, sobre a malandragem/magia africana – como alguma falta de inteligência prática nas relações de causa e efeito (pois é disso que se trata), Freyre nos dá pistas reveladoras em CG&S:
“Porque nada mais anticientífico que falar-se da inferioridade do negro africano em relação ao ameríndio sem discriminar-se antes que ameríndio; sem distinguir-se que negro. Se o tapuio; se o banto; se o hotentote. Nada mais absurdo do que negar-se ao negro sudanês, por exemplo, importado em número considerável para o Brasil, cultura superior à do indígena mais adiantado. Escrever que ‘nem pelos artefatos, nem pela cultura dos vegetais, nem pela domesticação das espécies zoológicas, nem pela constituição da família ou das tribos, nem pelos conhecimentos astronômicos, nem pela criação da linguagem e das lendas, eram os pretos superiores aos nossos silvícolas’, é produzir uma afirmativa que virada pelo avesso é que dá certo. Por todos esses traços de cultura material e moral revelaram-se os escravos negros, dos estoques mais adiantados, em condições de concorrer melhor que os índios à formação econômica e social do Brasil. Às vezes melhor que os portugueses”. (p. 370)
Ou, ainda:
“Os escravos vindos das áreas de cultura negra mais adiantada foram um elemento ativo, criador, e quase que se pode acrescentar nobre na colonização do Brasil; degradados apenas pela sua condição de escravos. Longe de terem sido apenas animais de tração e operários de enxada, a serviço da agricultura, desempenharam uma função civilizadora. Foram a mão direita da formação agrária brasileira, os índios, e sob certo ponto de vista, os portugueses, a mão esquerda. E não só da formação agrária. Eschwege salienta que a mineração do ferro no Brasil foi aprendida dos africanos. E Max Schmidt destaca dois aspectos da colonização africana que deixam entrever superioridade técnica do negro sobre o indígena e até sobre o branco: o trabalho de metais e a criação de gado. Poderia acrescentar-se um terceiro: a culinária, que no Brasil enriqueceu-se e refinou-se com a contribuição africana”. (p. 390)
Evidente que se tratam das visões destes pensadores, amparadas por suas referências. No entanto, demonstram que a percepção que tiveram, como especialistas, é imensamente diferente da que tiveram Mourão e Campos. E mais: nenhum deles atribui qualquer herança cultural específica de um povo para outro; a cultura brasileira se produziu no Brasil, com suas qualidades e defeitos. A citação de José Bonifácio, na epígrafe deste artigo, mostra uma compreensão muito mais sagaz do caráter dos brasileiros; o patriarca da independência, sabia e belamente, critica e exalta ao mesmo tempo.
Portanto, podemos dizer que general Mourão estava duplamente equivocado: tanto pelo fato de suas declarações, mesmo que inconscientemente, remeterem ao racismo biológico e eugenista do séc. 19, quanto por estarem, de acordo com os maiores especialistas em cultura brasileira, completamente erradas. E o pior: em vez de se retratar, reconfirmou as afirmações, mesmo se defendendo da acusação de racismo. Mourão mostrou-se portador daquilo que Roberto Musil chamou de estupidez inteligente, que é:
“[…] a verdadeira doença da formação – digamos, para evitar qualquer mal-entendido, que é a ausência de formação, a formação falhada, mal recebida, desequilíbrio entre a sua substância e a sua força […] Pode atingir até a mais alta intelectualidade; porque, se a estupidez autêntica é uma artista pacífica, a estupidez inteligente, que contribui para a mobilidade da vida do espírito, provoca, sobretudo, a sua instabilidade e esterilidade”. (Da estupidez, Relógio D’Água, p. 31).
Mourão “deu o que falar”. Merecia as repreensões de Dona Benê. E para um início de campanha eleitoral, convenhamos, foi mal, Mourão, muito mal!
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