“A virtude é a ordem ou a ordenação do amor, como aquilo para o que é a virtude, pois é por ela que o amor se ordena em nós”. (Santo Tomás de Aquino)
Ainda baseando-me na proposta do filósofo Eric Voegelin, a fim de resgatar a realidade, finalizo minha série de artigos sobre educação analisando o último aspecto apontado por ele na sentença (já reproduzida nos outros artigos) retirada de sua obra Reflexões autobiográficas: “Recuperar a realidade, resgatando-a da deformação a que foi submetida, exige bastante trabalho. É preciso reconstruir as categorias fundamentais da existência, da experiência, da consciência e da realidade”.
No primeiro artigo, fiz uma crítica às pedagogias modernas e sua disseminação da desordem disfarçada de inovação e liberdade. O exemplo que utilizei foi o professor John Keating, do filme Sociedade dos Poetas Mortos. No segundo, defendi que a proposta de Voegelin nada mais é do que a Paideia grega, sintetizada na Alegoria da Caverna, eixo central da obra platônica A República. No terceiro artigo, tratei especificamente da recuperação do fundamento da existência, analisando vídeos de dois esquerdistas em pleno surto psicótico, abandonando a realidade dos fatos para defender Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-presidente e atual presidiário; Sócrates nos ensina que o fundamento da existência é sabermos que a vida é um dom, e que não podemos reduzi-la aos aspectos meramente materiais, como querem os ideólogos. No quarto artigo, sobre os fundamentos da experiência, Jean-Paul Sartre nos ajuda a compreender a mente moderna, cujo existencialismo ateu, que lança a vida num niilismo hedonista – cultivado por muitos artistas e intelectuais –, é uma armadilha que aniquila as bases morais da sociedade, gerando desespero e morte (espiritual e material). No quinto artigo, Bartleby, personagem icônico de Hermann Melville, é um exemplo da inércia de nossos estudantes (e da sociedade em geral), que precisam, urgentemente, recuperar o fundamento de sua consciência através da reordenamento de suas determinações. Por fim, tratemos do fundamento da realidade.
Proponho, caro leitor, que as virtudes cardeais (do latim cardus: gonzo, dobradiça de porta) sejam o fundamento de nossa realidade, pois são elas que nos dão condições para reconhecer e agir diante das situações reais que nos cercam diariamente. Santo Tomás de Aquino diz, na Suma Teológica, que as virtudes são hábitos – que, por sua vez, são qualidades – numa relação entre ato e potência. Diz-nos o Doutor Angélico:
“A virtude designa certa perfeição da potência. Mas a perfeição de uma coisa é considerada, principalmente, em ordem ao seu fim. Ora, o fim da potência é o ato. Portanto, a potência será perfeita na medida em que é determinada por seu ato”. Portanto: “as potências racionais próprias do homem não são determinadas a uma coisa só, antes se prestam, indeterminadamente, a muitas coisas. Ora, é pelos hábitos que elas se determinam aos atos. Por isso as virtudes humanas são hábitos”. (Suma Teológica, I, II, Q. 55, a.1)
Ou seja, as virtudes são disposições voltadas para a vida prática e fundamentadas pela experiência; são elas: prudência, justiça, temperança e fortaleza. Segundo Platão, n’A República, são as virtudes da cidade perfeita (427e). Cada uma com suas características específicas, mas todas dependentes da prudência, a mãe de todas as virtudes.
De acordo com Santo Tomás, “a prudência ajuda todas as virtudes e opera em todas” (II, II, Q. 47, a.5). Ninguém pode ser justo, temperante ou resiliente (para usar um termo atual para a fortaleza) senão for, antes, prudente. É uma virtude especial, cuja imagem é representada por uma mulher de duas faces, uma bela, feminina e jovial, outra, um homem idoso e experiente. Nosso “Boi Mudo” (para quem não sabe, um dos apelidos de Santo Tomás), é quem nos explica de maneira precisa: “a prudência concerne às ações particulares, nas quais a diversidade é infinita. Não é possível que um só homem seja plenamente informado de tudo o que a isso se refere, nem em um curto tempo, senão em um longo tempo. Por isso, no que se refere à prudência, em grande parte, o homem tem necessidade de ser instruído por outro; e sobretudo pelos anciãos”. (II, II, Q. 49, a.3)
Provavelmente aquele que mais se especializou no estudo das virtudes, foi o filósofo alemão Josef Pieper (1904-1997); e é ele que, em sua obra Virtudes Fundamentais (Aster), nos dá a chave para a aplicação da prudência no contexto proposto por Voegelin: “o que é bom começa por ser prudente; o que é prudente, porém, está de harmonia com a realidade” (p. 18). Pieper, em conferência que resume seus muitos anos de pesquisa sobre as virtudes cardeais (traduzida brilhantemente pelo querido prof. Jean Lauand, meu orientador e um dos maiores especialistas em Santo Tomás), nos diz que a prudência é ver aquilo que é: “precisamente este é o sentido da prudência e de sua posição privilegiada: que – tanto quanto possível – vejamos a realidade, que eu veja como realmente são os elementos que compõem a situação que exige de mim uma decisão”. Nesse sentido, a prudência ordena nosso agir no mundo pelo discernimento que nos fornece a razão e a experiência; ou, nas palavras de Santo Tomás: “os princípios universais da razão como os singulares, que são o objeto das ações”. (II, II, 47, a.3)
Quando tive a felicidade de lecionar para crianças do Ensino Fundamental I, trabalhei por um ano todo as virtudes cardeais, uma por bimestre. Em relação à prudência, o famosíssimo conto Chapeuzinho Vermelho, imortalizado pelos Irmãos Grimm, foi o texto base. Ao ler a história para as crianças na versão “original” dos Grimm, na qual a Chapeuzinho é devorada pelo Lobo Mau, as crianças imediatamente disseram, indignadas: “mas por que a Chapeuzinho não foi embora quando viu que sua avó estava estranha?!” Ou seja, a pobre garotinha foi imprudente. Também aprendemos que é prudente, ao recebermos algo comestível de um desconhecido, não consumirmos; ou, ainda, sempre atravessar a rua na faixa de pedestres, aguardando o sinal verde. Princípios básicos que vão preenchendo nossa imaginação moral de prudência.
Resume bem, Pieper, em sua obra: “a prudência é, portanto, como forma fundamental e ‘mãe’ de toda a virtude humana, o traço específico do nosso espírito, que aplica à realização do bem o conhecimento da realidade”. (p. 33)
A justiça é, basicamente, segundo Pieper – seguindo a tradição escolástica e o direito romano: “dar a cada um o que é seu”. Pode ser , ainda, distinguir o próprio do alheio ou uma ordem a estabelecer nas coisas. Num mundo desigual, com pessoas desiguais em circunstâncias desiguais, a solidariedade é uma medida de justiça, é virtude. “Na justiça, evidencia-se da maneira mais completa aquela espécie de energia física do bem” (p. 97). O justo – palavra bíblica da mais alta qualificação – é aquele que se volta para o próximo, buscando a possibilidade de equacionar suas necessidades e, se possível, saná-las. Não se trata de uma virtude social ou mesmo de algo que se solucione por medidas governamentais. A justiça é uma virtude individual, que cada um deve desenvolver e praticar. Pieper caracteriza, em sua conferência, de forma definitiva essa relação:
“No que deve residir, então, a causa de que a todo aquele que porta uma face humana, simplesmente pelo seu ser-homem, algo lhe seja devido inalienavelmente? Por exemplo, que a sua honra como pessoa seja respeitada. O conceito de pessoa, de fato, é aqui decisivo – enquanto se compreende “pessoa” como um ente que existe para seu próprio aperfeiçoamento e realização. Mesmo assim, em caso de conflito, ao se chegar aos extremos, não basta retroceder ao mero ser-pessoa (como supunham alguns filósofos idealistas). É necessário nesses casos, poder colocar em jogo uma instância absoluta, mais além de qualquer instância humana, ou, dito de outro modo: o outro deve ser-me intocável por eu o ver como ente criado por Deus como pessoa”.
É disso que se trata: do outro como um Tu (para usar o termo de Martin Buber).
A fortaleza é a resistência do mais fraco. É o poder de enfrentarmos as adversidades, os infortúnios, com altivez e determinação. Lembro-me de ter usado, com meus pequenos alunos, o exemplo de famílias que perdem todos os seus bens em catástrofes naturais. O que faz com que essas pessoas simplesmente se levantem, limpem os escombros de suas casas e almas, e sigam em frente? É preciso uma boa dose de fé em Deus, evidentemente, pois, como diz Pieper – citando Santo Agostinho – a fortaleza é a “‘prova irrefutável’ da existência do mal”; é preciso lidar com tal verdade resistindo e atacando. Ele nos explica:
“A fortaleza implica vulnerabilidade; sem essa vulnerabilidade não há sequer a possibilidade de fortaleza. Um anjo não pode ser forte, porque não é vulnerável. Ser forte significa ter capacidade para receber um ferimento. Um homem pode ser forte porque pode ser ferido… Entende-se por ferimento toda a violação da incolumidade natural contrária à nossa vontade, toda ofensa ao ser que em si próprio descansa, tudo o que é de qualquer modo negativo, tudo o que magoa e prejudica, atemoriza e oprime”. (p. 173)
O bem, desse modo, não se impõe por si mesmo, é preciso que o indivíduo empenhe-se na sua realização, e, nesse sentido, cumpre resistir e atacar às circunstâncias, numa disposição heroica.
A coragem obstinada de Frodo Bolseiro, em O senhor dos anéis, de J. R. R. Tolkien, nos dá um exemplo perfeitamente ilustrativo de como a fortaleza age. No melhor estilo paulino, da força que se aperfeiçoa na fraqueza, Frodo – pequeno, fraco, mas muito determinado – enfrenta todos os perigos que até os mais hábeis guerreiros e elfos da Terra Média sabiam ser quase impossível transpor.
Por fim, a temperança – ou moderação – que trata, nas palavras de Pieper, de “defender-se da autodestruição”. Em nosso mundo atual, das tecnologias e dos inseparáveis smartphones, qual a probabilidade de uma criança ou adolescente – e não poucos adultos – adquirir uma dessas novas doenças por uso excessivo de dispositivos móveis? Ou mesmo como controlar aquela ansiedade que nos faz exagerar no consumo – seja de roupas, sapatos, comidas, bebidas etc.? A temperança trata disso, mas é mais do que isso. “Trata-se, na verdade, de que justamente as forças do ser do homem orientadas por natureza para a autoconservação, aperfeiçoamento e realização, são aquelas mesmas forças que podem também desnaturar-se para a autodestruição. Todas elas e, talvez, somente elas”. Temperança é a virtude da disciplina e da medida. É a virtude mais importante da ética aristotélica, a capacidade de distinguir o meio termo entre o excesso e a falta:
“De tudo que é contínuo e divisível, é possível tirar uma parte maior, menor ou igual, e isto tanto em termos da coisa em si quanto em relação a nós; e o igual é um meio termo entre o excesso e a falta. Por ‘meio termo’ quero significar aquilo que é equidistante entre em relação a cada um dos extremos, e que é único e o mesmo em relação a todos os homens; por ‘meio termo’ em relação a nós, quero significar aquilo que não é demais nem muito pouco, e isto não é único nem o mesmo para todos”. (Aristóteles, Ética à Nicômaco, UnB, p. 41)
Não se trata, pois, somente de um controle para o consumo, mas de uma “disposição de caráter”. O fim da temperança, segundo Pieper, é a “ordem interior do homem, o equilíbrio interno, donde, e só dali, flui toda aquela ‘quietude a alma’”. (op. cit., p. 215)
A temperança é, pois, a única das virtudes cardeais que trata do próprio agente. Todas as outras relacionam-se com nosso agir no mundo, com o outro; mas a temperança diz respeito à preservação de minha própria integridade.
Tais são as virtudes cardeais que, segundo penso, são absolutamente fundamentais para recuperarmos a realidade e, consequentemente, o sentido da educação. Imaginais uma escola que tenha por princípio, para todos, tais princípios; que exercitasse e ensinasse aos seus alunos o valor da prudência, da justiça, da fortaleza e da temperança. Onde cada um dos professores e gestores fossem um exemplo de integridade moral a ser transmitido àqueles que estão às portas da vida. Imaginais se cada pai e mãe, em suas casas, tratasse de transmitir aos seus filhos tais virtudes; que cada amigo, casal, colega de trabalho, fosse portador e transmissor de virtudes. Um novo Brasil, certamente, surgiria.
Em tempo: ser prudente é a qualidade fundamental de um conservador. Se és conservador, caro leitor, é imprescindível que sejas prudente. É imperioso que não te deixes inflamar por ideologias – sejam elas comunistas, anticomunistas, capitalistas ou liberais. Como diz Russell Kirk: “o conservador declara agir somente após suficiente reflexão, tendo sopesado as consequências. Reformas rápidas e agressivas são tão perigosas quanto cirurgias rápidas e agressivas” (Russel Kirk, A política da prudência, É Realizações, p. 107).