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Marcelo Elias/Gazeta do Povo
Marcelo Elias/Gazeta do Povo| Foto:

Certa esquerda resiste à reforma da Previdência porque haveria um pote de ouro intocado como solução para o problema. É a chamada dívida ativa, dívida dos contribuintes com a União referente às contribuições para o INSS. Guilherme Boulos, por exemplo, propôs como alternativa à reforma “cobrar as dívidas das grandes empresas, quase R$ 450 bilhões”.

O que tem de verdade nessa história? Muito pouco. Destacamos nesse texto 5 mitos sobre o tema.

Mito 1: O governo não cobra os devedores da Previdência

Frequentemente quando se afirma que o governo não cobra quem deve se apresenta também a lista dos maiores devedores da Previdência. A lista é gerada… pelo governo.

O órgão responsável pela cobrança é a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), cuja marca inclusive aparece em algumas mensagens com esta lista. Esta “Procuradoria” não tem nada a ver com os procuradores do Ministério Público.

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A PGFN é um órgão do próprio Poder Executivo, que era ligada – como o nome sugere – ao Ministério da Fazenda, o atual Ministério da Economia.

Perceba assim que a lista é exatamente o contrário do que é entendida: é a lista de quem é cobrado pelo governo. Nas fake news da reforma, ela vira a lista de devedores que não são cobrados.  São 5 milhões de ações de cobrança em andamento no Poder Judiciário propostas pelo governo.

Mito 2: Empresas devem R$ 450 bilhões à Previdência

A dívida ativa de fato ficou recentemente ao redor de R$ 450 bilhões. Por que a afirmação da imagem abaixo, por exemplo, é então um mito?

Porque parte dos devedores não é de empresas privadas e parte pertence inclusive ao próprio Estado. Por exemplo, entre os 50 maiores devedores em 2018, 12 são órgãos estatais.

Nesses casos, ainda que a recuperação seja justa, estaríamos apenas trocando dinheiro de bolsos de um mesmo casaco. A ideia de que há uma grande quantidade de dinheiro a ser recebida do setor privado não se sustenta.

Entre os agentes estatais, se destacam hoje empresas de saneamento (sendo as de Piauí, Maranhão e Rondônia as maiores). Havia tantas prefeituras na lista que o governo Temer editou um programa de refinanciamento só para elas.

Entre os 5 maiores devedores da Previdência, 2 pertencem a governos: a Água e Esgotos do Piauí e o Instituto Candango de Solidariedade (quase R$ 1 bilhão para ambas).

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As outras 3 no Top 5 são empresas privadas conhecidas. São elas a Varig, a Vasp e a Transbrasil. Falaremos dela em seguida, quando tratarmos de outro mito.

Mas não só empresas e órgãos do Estado que integram a dívida, como também em menor grau entidades filantrópicas – ou em tese filantrópicas.  No Top 15 dos devedores, por exemplo, está o Instituto Geral de Assistência Social Evangélica (Igase).

Mito 3: Grandes empresas devem R$ 450 bilhões à Previdência

Boulos falou das “grandes empresas” que devem R$ 450 bilhões. Já vimos que boa parte dos devedores é estatal. Mas da dívida que de fato tem origem no setor privado, não existem só “grandes empresas”. Um grande volume das dívidas é referente a empresas pequenas e, entre as grandes, empresas falidas ou em vias de falir.

É o caso das 3 empresas aéreas que pertencem ao Top 5. Os débitos da Varig já somam R$ 4 bilhões, os da Vasp quase R$ 2 bilhões e os da Transbrasil mais de R$ 1,3 bilhão. Recuperar dinheiro de massas falidas é naturalmente difícil.

50 maiores devedores da Previdência, por tipo – 2018

Fonte: PGFN.

Na realidade, o próprio montante alto da dívida ativa é explicado pela permanência dos devedores por muito tempo na lista. Sobre os débitos incidem juros e correção monetária. Por exemplo, todo ano a dívida da Varig aumenta, sem que isso represente maior probabilidade de entrada de recursos nos cofres públicos. Entre outros grandes devedores falidos, são emblemáticos o jornal Gazeta Mercantil, a Editora Páginas Amarelas e TV Manchete.

Esta crítica é feita mesmo por procuradores da própria PGFN, respondendo as acusações de que seu trabalho é ineficiente:

“Normas que tutelam o interesse público e sua interpretação impedem que a Coordenação-Geral de Dívida Ativa dê baixa em créditos cuja possibilidade de recuperação já se esgotou. O sistema obriga que a PGFN mantenha em sua carteira dívidas já reconhecidas inexequíveis pelo Judiciário, como no caso de massas falidas já exauridas por outros credores preferenciais, créditos de pessoas falecidas, ou de empresas que desapareceram sem deixar patrimônio. Este conjunto de créditos irrecuperáveis permanece na carteira da PGFN por até 5 anos, inclusive produzindo crescimento vegetativo em razão da incidência de juros e prejudicando a medição da eficiência do órgão.”

Nesse sentido, segundo a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), o órgão responsável pela cobrança da dívida ativa, apenas 4% dela tinham “alta chance” de recuperação. Outros 38% teriam “média chance”. 28% dela teriam “baixa chance” e 30% “remota chance” (2017). Simplificando a classificação, poderíamos dizer que 60% não vai ser recuperado.

Dívida ativa previdenciária – Por chance de recuperação – 2017

 

Mito 4: Bancos são quem mais devem à Previdência

Bancos são vilanizados tipicamente na discussão previdenciária, considerados os principais interessados em sua aprovação porque são credores da dívida pública e porque seus planos de previdência privada passariam a ser mais atraentes se a previdência pública for menos generosa.

Mas eles aparecem também frequentemente na discussão como supostamente grandes devedores.

Não procede. O Itaú Unibanco aparece na lista de devedores com menos de R$ 900 mil. Bradesco e Santander não constam da lista. Idem para Banco do Brasil e Caixa.

Há ainda uma disputa no Judiciário entre os bancos e o Fisco. Como ocorre com outras grandes empresas, consiste na natureza de verbas como auxílio-creche; aviso prévio; indenização de transporte; participação em lucros; terço de férias; vale-transporte e vale-alimentação. Empresas entendem que são verbas indenizatórias, enquanto o Fisco entende serem remuneratórias (devendo haver incidência de contribuições previdenciárias). Os débitos com a União podem ser judicializados com a presença de garantias (carta fiança, penhora, seguro garantia).

Setores da economia que efetivamente se destacam na lista de devedores são os setores de transportes terrestres e educação. No caso dos frigoríficos, que até pouco tempo se destacavam na lista (ex: JBS), parecia haver barganha entre a dívida de contribuições previdenciárias devidas por eles e créditos tributários de contribuições devidos pela União. As empresas defendiam um “encontro de contas” (o que poderia ser neutro ou mesmo negativo para a Seguridade Social).

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Existem também empresas em atividade que se comprometeram a pagar seus débitos e participam de programas de refinanciamento (Refis). Assim, o dinheiro já estaria sendo recuperado e não seria no montante especulado nos discursos mais apaixonados sobre a dívida ativa. O valor só é abatido da dívida ativa ao final do pagamento: ou seja, mesmo débitos repactuados aparecem com o valor original (maior).

Mito 5: Basta recuperar a dívida para cobrir déficit

É preciso distinguir que o problema previdenciário é de fluxo (como um salário) e a dívida ativa é um estoque (como um patrimônio). Isto é, há um fluxo anual, contínuo e crescente de despesas, e a dívida ativa se refere a um dinheiro devido no passado, que não se repete no tempo. Na prática, a dívida atuarial do Regime Geral até 2060 (soma dos déficits futuros) é de R$ 8 trilhões – cerca de 20 vezes maior do que a dívida ativa existente hoje.

Considere o montante “recuperável” da dívida ativa (alta e média chance de recuperação). Em 2017, o montante recuperável somaria R$ 180 bilhões. Se todo ele fosse recuperado, equivaleria somente a um trimestre da despesa da União (em todos os regimes). Frisa-se que considerar recuperável mesmo o que tem apenas chance “média” de recuperação é uma premissa muito otimista e, obviamente, irrealista.

Se devedores não são o problema, os Refis são

Do lado da receita previdenciária os continuados programas de refinanciamento, ao gerarem incentivos adversos a maus pagadores, parecem constituir problema muito mais grave do que a chamada dívida ativa. Existem hoje quase 30 tipos de refinanciamento em funcionamento. A edição sucessiva dos chamados Refis estimula em escala difícil de mensurar a inadimplência, diante da expectativa de que débitos sejam eventualmente renegociados. Para a PGFN, o impacto é “nefasto” sobre a dívida.

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“A grande maioria não é devedora. Ao contrário do que se diz, de que todos devem, não é verdade. Tanto as pessoas jurídicas como as físicas, na sua grande maioria, cumprem sim com seu dever. É uma minoria que deve e há uma concentração nessa dívida.  (…) os Refis vêm para beneficiar uma minoria em detrimento de quem paga seus tributos. Esses programas não têm tido resultados bons de arrecadação. Num primeiro momento traz um incremento na arrecadação, mas nos anos subsequentes cai substancialmente.”

O governo Bolsonaro sinalizou acabar com os Refis nas discussões sobre reforma tributária, que são vedados na proposta de reforma da Previdência de Armínio Fraga e Paulo Tafner. Não sendo assim, eles constituem um importante ponto a ser cobrado pela oposição na reforma previdenciária. É um argumento mais qualificado do que a fake news da dívida das grandes empresas que não é cobrada.

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