Com mais de 150 mil compartilhamentos somente no Facebook, viralizou nos últimos dias a manchete de Leonardo Sakamoto, do UOL, destacada pelo portal: “Reforma trabalhista limita indenização a vítimas da tragédia a 50 salários”. Entre outros, a manchete sobre Brumadinho foi compartilhada por Fernando Haddad. Que história é essa?
Embora no corpo do artigo Sakamoto explique a questão, a manchete isoladamente é falsa. As vítimas da desgraça de Brumadinho vão sim receber indenizações maiores do que 50 salários.
A Reforma Trabalhista não limitou danos materiais
As vítimas de Brumadinho vão provavelmente processar a Vale por dois tipos de danos. Um é o dano moral, que a Reforma Trabalhista de fato limitou a 50 salários (50 salários do trabalhador, não 50 salários mínimos). Outro é o dano material, que inclui as despesas imediatas por conta da tragédia (ex: funeral) e, principalmente, a perda de renda decorrente do acidente.
Assim, uma família que dependia de um trabalhador morto em Brumadinho processará para receber por décadas uma pensão. Essa indenização será calculada de acordo com o salário do funcionário e sua expectativa de vida, isto é, vai buscar estimar a perda da renda com a morte do trabalhador.
Essa indenização não está limitada pela Reforma!
Tome como exemplo uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) de 2016, ou seja, antes da Reforma Trabalhista. A decisão envolveu o caso de um engenheiro morto em um acidente de trânsito, ocorrido em serviço e no carro da empresa – causado por um motorista bêbado.
Os danos morais foram calculados em R$ 200 mil, e os danos materiais em R$ 1,4 milhão.
De fato, sobre a manchete de Sakamoto, a juíza do trabalho Ana Fischer vaticinou:
“A indenização por danos materiais é a que mensura, de fato, a perda econômica do dependente da vítima e, se bem arbitrada, o ampara como se não tivesse perdido (economicamente, por óbvio) o ente querido. Não existem limites legais para essa indenização.”
Assim, é falso afirmar que “Reforma Trabalhista limita indenização a vítimas da tragédia a 50 salários”.
Aliás, é claro que a Reforma Trabalhista se aplica ao acidente de trabalho, isto é, aos que trabalhavam na Vale no momento da tragédia. Ela não se aplica às demais vítimas de Brumadinho, o que torna mais lamentável a manchete escolhida e o destaque dado pelo UOL.
Nem o governo Temer era a favor da limitação do dano moral
De fato, o dano moral é sim muito importante: o dano material, que não é limitado, depende da própria dependência da família do salário do trabalhador.
E a regulamentação da Reforma Trabalhista quanto ao dano moral é mesmo polêmica. Além do limite de 50 salários da vítima ser potencialmente baixo em muitos casos, ele também implica que – para uma mesma situação – trabalhadores que ganham mais devem receber dano moral maior.
LEIA TAMBÉM: Monumento pelo Teto de Gastos: o centro empresarial de 72 andares só com órgãos públicos
É o caso do dano moral em Brumadinho que, para a mesma tragédia, seria maior para uma médica da Vale do que para um motorista.
O próprio governo Michel Temer editou a Medida Provisória 808, alterando este e outros pontos da Reforma. O parâmetro do dano moral deixaria de ser o salário da vítima. O limite seria de 50 vezes o teto do INSS, cerca de R$ 280 mil. E não se aplicaria ao caso de morte.
Só que a Medida Provisória só valeu por alguns meses. Teria que ser votada perto das eleições do ano passado. Como não foi votada, perdeu a validade.
Se não for alterado, o limite como está vai provavelmente ser considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Os próprios juízes trabalhistas que analisarem os casos de Brumadinho podem considerar o trecho inconstitucional e não aplicá-lo. Há ainda neste debate o entendimento de que o limite da Reforma para os danos morais somente se aplicariam para o trabalhador, e não para sua família, não valendo então em caso de morte.
E por que a Reforma Trabalhista tratou de dano moral?
Para a juíza Ana Fischer, “a indenização por danos morais é a que mais potencialmente pode gerar injustiças. É extremamente variável e depende de cada juiz. Uma infinidade de parâmetros, primordialmente subjetivos, influenciam (sic) o arbitramento. São extremamente comuns os casos na Justiça do Trabalho em que, diante de um mesmo evento, juízes fixem indenizações por danos morais bastante díspares para trabalhadores com as mesmas condições socio-econômicas. Às vezes a variação atinge centenas de milhares de reais.”
Assim, o objetivo da Reforma era balizar a aplicação de danos morais – ainda que, como vimos, o próprio Temer tenha desfeito a baliza pelos salários e em caso de morte.
A parametrização do dano moral se insere em um conjunto de medidas mais amplas da Reforma referente à farra das ações judiciais. O entendimento é de que as chamadas aventuras judiciais dos advogados combinadas com o populismo judicial de alguns juízes tornavam o custo de um emprego maior e, em especial, imprevisível.
Sem saber quanto um contrato de trabalho vai custar ou sabendo que ele vai ser elevado pela Justiça no futuro, a demanda por trabalho fica retraída. Perdem os desempregados.
O caso de Brumadinho é extremo em outro sentido: mostra situação em que o dano moral é obviamente devido e em que a reforma é inadequada. O texto da MP era melhor.
Porém, é importante lembrar de outro extremo. Isto é, casos em que a loteria de indenizações de danos morais concedidas pela Justiça do Trabalho e a consequente insegurança jurídica contribuíram para o ambiente antiemprego que vigorava no Brasil.
Um deles: o Bradesco já foi condenado a pagar R$ 800 milhões de danos morais (coletivos) em um único caso, ocorrido em agências do Rio Grande do Sul: dois funcionários do banco foram demitidos por represália contra um familiar.
O fato é condenável, mas a indenização – que na verdade nem iria para as vítimas – é razoável? Na verdade, o juiz até reduziu o pedido de indenização feito pelo Ministério Público. Acredite: por essa pendenga, o MP queria uma indenização de 10% do lucro líquido do Bradesco em todo o país durante 5 anos!
Qual a consequência para o emprego de precedentes em que uma decisão equivocada de subalternos gera um custo de quase R$ 1 bilhão em danos morais?
O dano moral tinha virado um filão, e os pedidos de indenização acompanhavam uma variedade de ações trabalhistas.
É claro que a indústria do litígio detesta a Reforma Trabalhista por coibir esse ativismo, danoso à criação de oportunidades. A desgraça de Brumadinho está sendo e será instrumentalizada por este lobby.
Em relação a Sakamoto, o jornalista atribuiu as omissões da manchete a um limite máximo de caracteres. Existem várias formas de reescrevê-la, mantendo a concisão e precisão, mas talvez sem gerar tantos cliques.
Que as famílias atordoadas pela tragédia, em luto e em busca dos seus, não sofram ainda mais com o baque de serem mal informadas sobre o seu futuro financeiro.