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O “Bolso Família”, a novidade da campanha de Bolsonaro (e de Boulos)

Depois de 3 anos de tentativas, conseguiu a reunião. Dilma Rousseff estava isolada no Alvorada, após ser afastada pelo Senado: Michel Temer já comandava o país, interinamente. A presidente afastada se comprometeu a criar um grupo de trabalho para implantar a proposta. Mas já era tarde e o impeachment sepultou o plano. Quando conseguiu ser ouvido, a presidente não tinha mais poder. Mais um fracasso para a ideia que já apresentara até no Iraque e desde os anos 1990 ele apaixonadamente defendia. Ele, Eduardo Suplicy.

A reviravolta: a renda mínima integra em 2018 o plano de governo oficial de um dos principais candidatos a presidente da República. Mas ele é Jair “Eu detesto o PT” Bolsonaro.

A renda básica universal (RBU), como é conhecida no debate, é tema quente nos Estados Unidos e na Europa, mas a sua estreia no debate eleitoral brasileiro começou com uma controvérsia nova. Por ora, a ênfase de Bolsonaro e seu círculo é em negar semelhanças com o Bolsa Família – que ele criticou no passado. No dia seguinte à apresentação do plano, O Globo noticiou: Bolsonaro defende Bolsa Família para todos os brasileiros. O candidato, indignado, rejeitou a manchete.

Só tinha um problema: o plano de governo. Dizia: “Acima do valor do Bolsa Família, pretendemos instituir uma renda mínima para todas as famílias brasileiras”.

A campanha se apressou a explicar: não seria um Bolsa Família para todas as famílias. Seria sim um programa de renda mínima a la o imposto negativo de Milton Friedman: pessoas abaixo de uma determinada renda receberiam o benefício.

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O que é o que é: benefício que paga um valor básico para famílias vivendo abaixo de um determinado nível? O Bolsa Família.

Se a ideia da campanha de Bolsonaro é aumentar esta linha, ela pode simplesmente ser traduzida como a ampliação do Bolsa Família. Ou seja: ou bem a manchete estava correta em falar em Bolsa Família para todas as famílias brasileiras, ou o programa é meramente a ampliação do Bolsa Família.

Infelizmente, a energia na discussão de uma proposta que poderia ser benéfica para o país tem sido gasta tentando afastá-la do programa petista.

É compreensível. No passado o candidato criticou o benefício porque “a Bolsa Família é uma mentira. No Nordeste você não consegue uma pessoa pra trabalhar na sua casa.” Seu filho, o vereador Carlos Bolsonaro, propôs mudanças na regra de concessão.

Hoje, para receber o benefício, a família tem de estar abaixo da linha da extrema pobreza e possuir renda per capita inferior a R$ 89, tendo um benefício básico do mesmo valor. Se houver criança, as regras são mais generosas: estar abaixo “somente” da linha de pobreza (renda per capita de até R$ 170) para receber, além do benefício básico, um variável de R$ 41 – até um limite.

O novo critério proposto por Carlos Bolsonaro para os beneficiários, além de estar abaixo das linhas de pobreza ou de extrema pobreza, era fazer cirurgias compulsórias de laqueadura e vasectomia.

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Assim, não é de se estranhar a recusa em aceitar que a proposta do presidenciável seja a ampliação do Bolsa Família ou um Bolsa Família para todos. Contudo, a literatura especializada converge para apontar que, nos moldes atuais, o programa não reduz a oferta de trabalho (como no exemplo das domésticas nordestinas) nem aumenta a fecundidade (como na crítica de Carlos). Os resultados foram encontrados em outros países para os chamados programas condicionais de transferência de renda: dezenas já os possuem.

É uma pena que o medo de contaminação com a impopularidade do Bolsa em parte do eleitorado tire o foco da proposta: a renda mínima de Bolsonaro pode ser a proposta mais importante da eleição até agora.

A renda mínima de fato se encontra em uma intersecção ideológica interessante. Como Renda Básica de Cidadania na obsessão de Suplicy, ela tem semelhanças com o Bolsa Família (do governo do PT), por sua vez evolução do Bolsa Escola (do PSDB), concebido pelo economista José Márcio Camargo (hoje assessorando o PMDB). Pérsio Arida, economista de Alckmin, a aventou. O programa de Marina Silva (Rede) fala em estudar possibilidades de implantação de uma renda mínima universal. Mas ela consta mesmo é do programa de Guilherme Boulos (PSOL): como “Renda Básica de Cidadania Universal” e assumidamente a partir do Bolsa Família. Pagaria-se meio salário mínimo para quem tem renda inferior a meio salário mínimo per capita.

Nos Estados Unidos, bilionários do Vale do Silício como Mark Zuckerberg e Elon Musk a defendem como remédio para o desemprego estrutural criado pela inteligência artificial. Hillary Clinton, uma democrata, disse que quase escolheu a renda mínima universal como mote de sua campanha. A ideia é conhecida como Alasca para a América, porque naquele estado a renda mínima existe, financiada pelo petróleo e criada por republicanos. Nixon, também republicano, conseguiu aprovar uma renda mínima na Câmara, que caiu no Senado.

Se normalmente alude a um assistencialismo associado à esquerda, o programa de governo de Bolsonaro tem razão em buscar a paternidade no liberal Milton Friedman. O Nobel defendia o imposto de renda negativo: a partir de um determinado nível de renda as pessoas pagam imposto, abaixo dela elas recebem. O componente liberal fica por conta de não haver restrições a como os beneficiários devem gastar o dinheiro e por conta de destinar a arrecadação do governo diretamente para financiar outros cidadãos, em vez de políticas públicas administradas pelo Estado.

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Existem duas perguntas importantes a respeito de uma renda básica universal: qual afinal seu objetivo? E como custeá-la?

Um objetivo inicial óbvio é o combate à pobreza. Ela é mais vantajosa do que aumentos do salário mínimo por atingir quem está fora do mercado de trabalho formal (informais, desempregados, desalentados) – cuja contratação encarece e fica mais improvável quando o salário mínimo sobe. Ao contrário de outras políticas públicas, é menos burocrática.

Mas o tema tem vindo à tona como medida para proteger trabalhadores deslocados pela automação, ajudando também a atenuar a desigualdade de renda que viria com o processo (que desempregaria pessoas ao passo que traria lucros altos para os donos dos robôs). O avanço tecnológico também estaria criando novos empregos que não se moldam ao vínculo tradicional com carteira assinada e que é protegido pela Seguridade, como de um motorista de Uber – daí a necessidade de proteção com a renda universal.

A renda universal também tem um elemento de “cidadania fiscal”. Ao colocar os indivíduos como beneficiários diretos da arrecadação, ela explicita o custo de oportunidade dos recursos públicos. E se cada brasileiro recebesse parte do dinheiro das privatizações? Ou da economia com a reforma da Previdência dos servidores? Estes debates seriam diferentes?

O custo total depende do valor do benefício e de se a renda realmente seria universal. Na proposta Boulos, ela é universal só no nome: famílias com renda per capita maiores que R$ 476 ficariam de fora. Na proposta Bolsonaro, ela seria para todas as famílias – mas o desmentido sugere que ela se assemelharia mesmo com a de Boulos, na prática a ampliação do Bolsa Família.

Tal aumento da linha de corte do Bolsa Família poderia facilitar a inclusão dos beneficiários no mundo do emprego, porque passariam a poder receber rendas maiores sem terem excluído o seu benefício.

Um painel feito com vários dos principais economistas dos Estados Unidos colheu muitas opiniões preocupadas com a falta de focalização da RBU. A renda universal seria ao mesmo tempo cara para o Estado e pouco generosa com quem mais precisa.

Eduardo Suplicy estimava em 2013 um benefício de R$ 70 por pessoa. O Fundo Monetário Internacional (FMI), simpatizante da RBU, calcula o custo para o Brasil em cerca de R$ 300 bilhões, tirando da pobreza mais de 20 milhões de pessoas. O valor seria de pouco mais de R$ 100 por brasileiro.

Uma possibilidade de implantação seria permitir que cidadãos pudessem optar sair da atual Seguridade e escolher a renda mínima. Ela substituiria uma ampla gama de benefícios: aposentadorias, pensões, auxílios, seguros, salários e abonos. Poderia ser financiada também com o fim dos subsídios ao regime previdenciário dos servidores e a multa da demissão do FGTS. Já a professora Tatiana Roque, da UFRJ, sugere implantação em etapas, a partir dos mais pobres, dos jovens e das vítimas do desemprego estrutural.

Bolsonaro ou Boulos, para implantar seu programa de governo, precisam somente de um decreto presidencial. A renda mínima não exige apoio do Congresso para emenda à Constituição nem projeto de lei. Ela pode ser feita simplesmente regulamentando uma lei que já existe, de 2004, que criou a “renda básica da cidadania”. O autor? The answer is blowing in the wind.

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